terça-feira, maio 31, 2005

Haicais de hoje

SOLAR
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Minha mãe cozinhava
exatamente: arroz, feijão, molho de batatinhas.
Mas cantava.
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Adélia Prado

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Arco-íris no céu
límpido e claro de junho
susprio, surpresa
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Sonia Rodrigues
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pensamento da semana:
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver crescer as injustiças, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.

Rui Barbosa
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Sites de literatura indicados - passeie por eles:
www.recantodasletras.com.br
www.usinadaspalavras.com
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Boa leitura!!

domingo, maio 29, 2005

terça-feira, maio 24, 2005

Bertolt Brecht - Leonardo Daniel -Tadeuz Rozewicz

Pensamento da semana:
(Para valorizar a leitura)
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"... e lança um olhar num livro que amas. Começa assim um dia belo e útil"
Bertolt Brecht
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Colaboração poética da semana:
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O BOSQUE DA MINHA MORADA
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Quando, olharem pros meus passos
Estiverem com os pés descalços
E paz no coração
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Quando, se perguntarem incautos
Profanos ou sagrados
Se a paz lhe chegarão
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Quando, a natureza se revelar
O canto das sereias se mostrar
Do oceano serão
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E dos poemas que faço
Os professores e os quadros
Tentarão a compreensão
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E dos poemas que já fiz
O aluno irá sorrir
Desafiando a convenção
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E dos poemas que não farei
Meu espírito se veste
E dança rebelde sobre o bosque da minha morada
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Leonardo Daniel
leodanielrb@yahoo.com.br

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Envie você também o seu texto que divulgaremos,
com seu e-mail ou página pessoal, se quiser.
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RISOS
Tadeuz Rozewicz - poeta polonês
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A gaiola esteve fechada por tanto tempo
que um pássaro nasceu lá dentro
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o pássaro ficou imóvel por tanto tempo
que a gaiola
corroída pelo silêncio,
se abriu
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o silêncio durou tanto
que por trás das barras negras
risos e mais risos ecoaram.

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quarta-feira, maio 18, 2005

O FAMOSO HAICAI DA RÃ DO MESTRE BASHÔ

HAICAI DO MESTRE BASHÔ E TRES DIFERENTES TRADUÇÕES
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Velho tanque.
Uma rã mergulha.
Barulho da água.


tradução de Cecília Meirelles

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Ploc! Uma rã pula
no silêncio da lagoa
e o silêncio ondula


tradução de Oldegar Vieira
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velha lagoa
o sapo salta
o som da água


Tradução de Paulo Leminski
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no original em japonês:
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"Furu ike ya
Kawazu tobi komu
Mizu no oto"
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Indicação de livros para download gratuito
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no site Bookbrasil:
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www.bookbrasil.com.br
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você encontra dois romances de Sonia Rodrigues:
Rosa
A fantástica experiência de Carolina Helena

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clique na categoria romance e confira.
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Boa leitura!!!
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DICAS DE SUCESSO:
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“Confie, como se tudo dependesse de Deus, e aja, como se tudo dependesse de você”. – Ignácio de Loyola, jesuíta.
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“Uma das condições mais necessárias para fazer coisas dignas de louros consiste em não ter medo de censuras” – A. Graf.
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quinta-feira, maio 12, 2005

Livro indicado para leitura

A música de todos os tempos – o relato de uma experiência
Adriana de Oliveira Ribeiro.
Ed. Universitária Leopoldianum – Faculdade Católica de Santos.
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Se Adriana nos conta a história do piano, não se engane o leitor pelo título. Adriana nos fala principalmente da totalidade do ser humano, citando filósofos, físicos, educadores, poetas, psicanalistas. A Música está a serviço da formação do caráter, da integração do Ser ao Cosmos.

Adriana é uma educadora excepcional. Ela não prepara a criança apenas para a música, e sim para a vida.

Tudo o que é importante se revela na simplicidade de ser e estar no mundo, a postura original da criança, ao passo que os especialistas, em nome de sua verdade, deixam escapar o óbvio.

A pessoinha da criança absorve tudo, tem o mundo em si, cria seu espaço, comunica-se através do movimento livre, em seu ritmo próprio. Adriana usa a fantasia para ir ao encontro dos pequeninos, pedindo antes a tarefa fácil, aguardando a evolução espontânea da criança para só então prosseguir na aventura da descoberta musical, obedecendo ao padrão que descobriu: as estórias refazem as fases da evolução da criança. E é fundamental respeitar esta evolução para evitar os problemas que surgem quando, no ‘diagnóstico’ genial de Adriana, esta criança, que é sempre promessa e surpresa, ‘não ouve histórias encantadas na hora de dormir’, ‘ não brinca em jardins floridos’, ‘não tem um bicho de estimação’.

Pobre criança aprisionada em concreto, plugada na internet, imobilizada defronte da televisaõ, para ela a Iniciação Musical de Adriana devolve o sonho, o espaço, a brincadeira.

Adriana cita o alquimista árabe Morienus: ‘a pedra filosofal, este tesouro, é extraída de vós. Se reconhecerdes isto, o Amor crescerá dentro de vós.’

Adriana, que viveu o tempo em que as coisas importantes eram guardadas só na memória e no coração, elege por companheiros escritores e poetas que alimentam a alma e aquecem o coração.

Adriana está bem acompanhada. Do médico Howards, que redescobriu o óbvio e desenfaixou os bebês, porque estes precisam ser tocados e estimulados. De Carl Orff, seu guru, cuja Música Viva trouxe para o Brasil. De Lapière, Lozanov, tantos outros inovadores que marcham adiante de seu tempo.

Adriana pode posar ao lado destes nomes famosos e sentir que – parafraseando Saint-Éxupery – ‘colocando sua pedra, ajudou a construir o mundo’.

Uma homenagem de sua ex-aluna, Sonia Rodrigues.

quinta-feira, maio 05, 2005

José Régio

José Régio
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(1901-1969)
por Sonia Rodrigues
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José Régio (pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira) nasceu em Vila do Conde, em 17 de Setembro de 1901. Poeta, dramaturgo, romancista, crítico, ensaísta, professor, memorialista, é talvez a figura literária mais completa do século XX. A sua vida, para além das suas actividades docentes, foi a sua obra.
Feitos os estudos secundários na Póvoa de Varzim e no Porto, matriculou-se na Faculdade de Letras de Coimbra, na secção de Filologia Românica, de onde sai licenciado em 1925, com uma dissertação revolucionária para o tempo, que veio a ser, refundida, a «Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa» e que foi, de facto, a sua estreia literária. Em 1925 publicava na Lusa Atenas o seu primeiro livro de versos, «Poemas de Deus e do Diabo».
Embora a crítica lhe fosse, em geral, indiferente e, até, hostil, não desistiu Régio das suas actividades literárias. Em 1927, com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, funda a revista e o movimento literário da «Presença», de que será sempre o principal animador, embora nem sempre o principal inspirador e onde cedo manifestou apreciáveis qualidades de crítico.
Em 1928 fixou-se em Portalegre como professor de liceu, funções em que permanecerá durante trinta largos anos.
Por tudo isto, três «meios» lhe marcam os destinos: Vila da Conde e o seu mar; Coimbra e a sua tradição do tardio séc. XIX; Portalegre e o mundo ancestral e largo que ela significa.
Bastante considerado nos meios intelectuais do País, ia repartindo serenamente a sua vida entre o ensino em Portalegre e as férias em Vila do Conde, de mistura com uma produção literária em prosa e verso mais ou menos constantes.
Faleceu em Vila do Conde, em 22 de Dezembro de 1969.
Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e crítico. Em 1927, funda com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca a revista PRESENÇA, órgão do Segundo Modernismo, de que foi uma das principais figuras. Preocupado com os problemas do eu dividido entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo, a sua obra novelística, desenvolvendo esta temática conflitual em que se defrontam religiosidade e experiência quotidiana, contém entretanto elementos de crítica social e testemunha a influência de Dostoievsky precisamente no modo como inconsciente e personalidade aí se encontram presentes. Nem sempre Deus é nomeado no conflito que em Régio se adensa. Isso não lhe retira porém nunca o carácter eminentemente confessional - como se, seja na contradição mais espiritualista, seja num maniqueísmo da consciência, seja no confronto com o seu próprio discurso, a dúvida e o medo fossem um fantasma sempre presente, sempre intruso, por isso mesmo tanto mais ameaçador na sua ausência. E é assim que não apenas no teatro Régio se manifesta como um dramaturgo: muitos dos seus poemas apresentam um sentido e uma estrutura formal dramáticos, ainda mesmo quando o interlocutor de Régio é Régio ele-próprio ou, como refere Eduardo Lourenço, um «sósia prodigiosamente real». Da sua obra ensaística são de destacar os textos de doutrinação polémica, em especial os que se relacionam com a reacção à crítica neo-realista e com a defesa dos ideais de certo esteticismo humanista do grupo da PRESENÇA.
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Obras: Livros de poesia: Poemas de Deus e do Diabo" 1925; Biografia, 1929; As Encruzilhadas de Deus, 1936; Fado, 1941; Mas Deus é grande, 1945; A chaga do Lado, 1954; Filho do Homem, 1961; e Cântico Suspenso, 1968. Outras publicações: Jogo da Cabra-Cega, 1934, e O Príncipe com Orelhas de Burro, 1942; novelas Histórias de Mulheres, 1946 e Há Mais Mundos, 1962, bem como da importante e incompleta "soma" romanesca intitulada A Velha Casa (Uma Gota de Sangue, 1945, As Raízes do Futuro, 1947; Os Avisos do Destino, 1953; As Monstruosidades Vulgares, 1960; Vidas são Vidas, 1966). Da sua atividade de dramaturgo salientam-se, por outro lado, as peças Jacob e o Anjo, 1940; Benilde ou a Virgem-Mãe, 1947; El-Rei Sebastião, 1949; e Três Peças em Um Acto, 1957, Finalmente, como ensaísta, Ensaios de Interpretação Crítica, 1964 e Três Ensaios sobre Arte, 1967.
.Data de 1925 o livro que assinala a sua revelação como poeta, perante o público e a crítica: "Poemas de Deus e do Diabo". Em 1926 forma-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, iniciando uma longa carreira como professor no Porto, no liceu Alexandre Herculano. Em 1928, fixa-se em Portalegre, passando aí a leccionar no liceu Mouzinho de Albuquerque, onde se manterá ao serviço durante mais de trinta anos. Em 1927, juntamente com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, funda a revista "Presença", de que é colaborador assíduo.Como poeta publicará diversas obras de relevo, como "Fado" (1941), "Mas Deus É Grande" (1945) ou "Cântico Suspenso" (1968). Mas, além da sua consagração entre os principais poetas portugueses contemporâneos, José Régio irá revelar-se ainda como romancista, novelista, ensaísta e dramaturgo, assinando obras de relevo como "Jogo da Cabra Cega (1934), "A Velha Casa" (com cinco volumes, escritos de 1945 a 1966), "Benilde ou a Virgem-Mãe" (escrito em 1947 e adaptado mais tarde ao cinema por Manoel de Oliveira) ou "A Salvação do Mundo" (1955). Morre na mesma terra onde nascera, Vila do Conde, a 22 de Dezembro de 1969. A título póstumo, é-lhe atribuído em 1970 o Prémio Nacional de Poesia pelo conjunto da sua obra poética. Em 1984, o 15 aniversário da sua morte é assinalado com diversas homenagens pelo país. Em Portalegre e Vila do Conde, as casas onde viveu são hoje museus com o seu nome. "In Público Magazine"

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Propostas do movimento modernista:
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- A arte não é imitação, mas criação subjetiva, livre. A arte é expressão dos sentimentos.
- A realidade que circunda o artista é horrível, por isso ele a deforma ou a elimina, criando a arte abstrata.
- A razão se torna objeto de descrédito.
- A arte é criada sem obstáculos convencionais, o que representa um repúdio é repressão social.
- A arte se desvincula do conceito do belo e feio, torna-se uma forma de contestação.

Na literatura: linguagem fragmentada, elíptica, constituída por frases nominais (basicamente aglomerados de substantivos e adjetivos), sem verbos, sem sujeito; despreocupação formal: sem rimas, sem estrofes, sem musicalidade. Os poetas expressionistas visam combater a fome, a miséria e os valores do mundo burguês.
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Dois aspectos marcam o Surrealismo em seu início: as experiências criadoras automáticas e o imaginário extraído do sonho.
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José Régio: a poesia entre deus e o diabo
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Nos poemas de fundo religioso dos primeiros livros de José Régio, costuma haver uma identificação entre o eu lírico e a figura de Cristo, ambos irmanados pela dor, pelo sofrimento e pelo sentimento de inadaptação ao mundo. Este poema ilustra esta atitude:
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Cristo
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Quando eu nasci, Senhor! Já tu lá estavas,
Crucificado, lívido, esquecido
não respondeste, pois, ao meu gemido,
Que há muito tempo já que não falavas...

Redemoinhavam, longe, turbas bravas,
Alentando ao ar fumo e alarido.
E a tua benta Cruz de Deus vencido,
Quis eu erguê-la em minhas mãos escravas!

A turba veio então, seguiu-me os rastros;
E riu-se, e eu nem sequer fui açoitado,
E dos braços da Cruz fizeram mastros...

Senhor! Eis-me vencido e tolerado:
Resta-me abrir o braços a teu lado,
E apodrecer contigo à luz dos astros!

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.Cântico negro
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"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
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Fragmento do poema As Barreiras:
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“Sim, cai toda semente em meu jardim.
O vento que a traz a leva.
Senhor, tem piedade de mim!
Deixa-me a tua Luz ou a minha Treva!”
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Bibliografia:
Detetives Literários – revista do Clube dos Poetas do Litoral – Santos/SP
Instituto Camõeswww.instituto-camoes.pt/escritores/camoes.htmSite de Porto Alegrehttp://www.motoclubevirtual.com.br/rs_portoalegre.htmRevista do Clube dePpoetas do Litoral:http://www.jornalexpress.com.br/noticias/cadernos.php?id_jornal=8822&caderno=95
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Haicai de mestre
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um pássaro
companheiro de caminho
pelo campo seco
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Senna


O haicai é a menor forma poética do mundo, de origem japonesa. Não tem rima e sempre nos remete a um tema da natureza, neste caso, o pássaro.
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LIVRO ON LINE: . . . DIAS DE OUTONO . . .
parte 7 - @ da autora
neste diário interior, onde as datas não importam, a vida que está oculta sob a pele, não vivida, mas pensada...


1999





Sonho que estou em uma grande casa, ensolarada, arrumada, limpa, cheia de pessoas. Ouço vozes, passos, vejo livros abertos sobre uma mesa, os óculos de meu pai em cima de um deles. O aposento é como uma loja, há uma seção de vestidos para meninas. Percorro a casa toda, feliz, passando a mão nas paredes e sentindo as arestas, a aspereza das paredes e a lisura das portas; sinto também o cheiro das madeiras. Sentir o tato é uma experiência nova em sonhos e eu a aprecio muito.
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Outro sonho: subo e desço várias vezes pela casa e jogo areia pelas janelas. Saio e vejo no pátio Sophia Bauer, minha professora de hipnose, junto com um grupo de terapetas alegres, discutindo entusiasmados os meus progressos.
Areia – ampulheta – tempo.
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Família em férias.
Ontem, fomos ao zôo em Belo Horizonte, e ficamos a observar um macaquinho.
O macaquinho estava - coisa excepcional para um macaco - absolutamente imóvel, encolhido junto ao tronco da árvore.
O passarinho distraído pousou a seu lado e zupt - foi imediatamente agarrado e espremido entre as mãozinhas espertas.
O passarinho piou, o que excitou o macaquinho, que pos - se a pular e a agitar as mãos para cima e para baixo, com a vítima presa pelas asas abertas. Socou - a contra os galhos, contra o tronco, esfregou - a, apertou - a, atirou - a para o alto, na maior alegria.
Parando alguns momentos para coçar - se, o macaquinho largou uma das asas. A imobilidade do passarinho o intrigou. Era de ver - se o seu espanto, a tocar agora delicadamente o corpo inerte.
Aí começou a parte realmente interessante do fato. O macaquinho largou a presa e olhou - a, desconfiado. Cheirou - a. Cutucou - a de várias maneiras. Abriu - lhe o bico e espiou lá dentro. Puxou - lhe algumas penas. Deve ter encontrado alguns piolhos, pois pos - se a catar com os dedos alguma coisa muito pequena que levou à boca e mastigou com prazer. A seguir, aos gritinhos, atirou o pássaro para o ar como se brincasse de bola, deu - lhes tapas como a uma peteca, chutou - o e até pulou em cima dele.
A pele da avezinha rompeu - se com tamanho peso.
E aí o nosso macaco começou a dilacerar com cuidado o que restava de pele íntegra e a puxar para fora, com movimentos precisos e delicados, as vísceras, que apalpava e cheirava, olhava de todos os ângulos, lambia e tornava a examinar. Parecia não cansar - se daquilo, entretido com aquele exame como se fora tarefa importante.
Arrancava as penas, as penugens do peito e as maiores do rabo, observando - as uma a uma e colocando - as enfileiradas sobre o tronco.
Aí apareceu outro macaco. Briga na certa.
Que nada! O outro ficou por ali, sossegado, e daí a instantes estavam os dois a tocar, a apertar, a cutucar, a medir, a cheirar, a trocar grunhidos entre si como se conversassem, tão concentrados em suas macaquices que nem se davam conta de estarem sendo, por sua vez, observados.
E eu pensei comigo : estou a contemplar o Simius curiosus, na pré história da espécie que dominará a Terra daqui a alguns milhões de anos, talvez.
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Acredite se quiser:
Já esqueci um bebê no banco traseiro do carro.
Em entrevistas de emprego já esqueci meu endereço, telefone, sobrenome.
Na adolescência eu fazia pior: ria antes das piadas; guardava o fichário escolar na geladeira; joguei o uniforme a ser lavado na lata do lixo; acendia o interruptor com o queixo, fechava a porta do carro com os quadris.
Já coloquei a lista telefônica no freezer.
Saí de carro e voltei a pé por ter esquecido que estava de carro.
Dei voltas e mais voltas no estacionamento por esquecido em que vaga estacionara.
Fui à delegacia e dei queixa de roubo do carro que deixara na garagem de casa.
Apoiei as compras no muro enquanto procurava as chaves do portão e entrei em casa sem os pacotes.
Telefonei ao ex por engano.
Dirigi-me ao emprego antigo, completamente fora do meu caminho.
Confundir datas era o padrão cotidiano.
Esquecer em qual planeta estou.
Isto pertence ao passado. Agora fiquei tão normal que perdi a graça.
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Culpa de Lobato, que escreveu algo assim: “E Dona Benta falou: ‘a China e a Índia são como duas velhas árvores craquentas, de frutos saborosos e nutritivos...’”
Fiquei curiosa e procurei entre os livros de meu avô, onde achei uns pensamentos de Confúcio e de Lao Tse. Na biblioteca da escola (católica), só mesmo a biografia de Sidarta. Semanas mais tarde, um tio doqueiro trouxe de presente um Buda de marfim, que a família colocou em local de destaque e venerou por muito tempo, não por ser um Buda, sim por ser de marfim.
Por amigos japoneses conheci ikebanas e origamis. Minha paixão pelas culturas do Oriente cresce com o passar dos anos.
Lobato também me introduziu na Mitologia Grega, fascinação antiga.
Um dia, uma freira repreendeu minhas leituras, afirmando que Lobato era comunista, e por sua causa – por causa da freira, não de Lobato – abandonei a religião católica.
Meus pais, que me presentearam com os primeiros livros do Sítio, declaravam não gostar de Lobato. Incongruência? Não. Ciúmes.Cresci Emília. Ousada, desafiadora, malcriada, sinto indignação ante as injustiças, frustração ante o desenvolvimento econômico e político ausente do país hoje, apesar do nosso petróleo de do nosso ferro.
.As idéias de Lobato germinaram nos corações das Tatianas Belinky e das Ruth Rocha de nossa pátria.
Tanto mérito, tão pouco reconhecimento.
E eu aqui a filosofar... por culpa tua, Lobato!
As idéias de Lobato germinaram nos corações das Tatianas Belinky e das Ruth Rocha de nossa pátria.
Tanto mérito, tão pouco reconhecimento.
E eu aqui a filosofar... por culpa tua, Lobato!
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De pátria a pária, basta tirar um r.
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2000
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Parece que há anos vivo na marginalidade.
Estou tão absolutamente farta de ser excluída que perdi o tesão de sair. Tentei por tanto tempo e por tantas diferentes maneiras voltar ao convívio das pessoas normais que já me pergunto se o resultado vale o esforço.
As regras sociais são sutis. Você só convive com casais se for casada também ou se for um parente, o coitado. Coitada da minha tia que ficou pra tia. Bem por aí.
Por anos não me caiu a ficha, inocente que sou. Os antigos amigos continuavam tão gentis por telefone e tão ausentes ao vivo e em cores, e os laços iam naturalmente afrouxando.
Quando dei por mim estava rodeada por uma fauna estranha: solteironas, divorciados, homossexuais e artistas mal sucedidos – alguns sem talento, outros pobres, outros alienados e a maioria totalmente fora do contexto, aquele tipo de gênio perigoso para o contexto. O tipo Bernard Shaw.
Intelectual tem de ser rico. Como o Vinicius. Exilado, expulso da carreira diplomática – perdão, diplomaticamente convidado a se retirar – curtindo Paris com os amigos e divulgando sua arte lá fora e se o sistema não quer, pior para ele.
O fato é que a sociedade ‘normal’ é formada por casais, e casais não recebem avulsos. Como se os avulsos fossem avançar no parceiro deles. Casais só recebem avulsos quando convenientemente acompanhados. Namorando, pode. Nos períodos em que namorei fui recebida, muito bem recebida e até paparicada. E morri de tédio. A conversa é do tipo o que comi ontem, veja só o que comprei e onde iremos nas próximas férias. Pior só a cri-cri (criada-criança) das donas de casa.
A maioria dos casais é enfadonha, com exceção do Carlos e da Catarina, ambos escritores, e do Jorge e da Amélia, ele compositor, ela pintora de talento, dois casais que usam os neurônios para pensar, ora que coisa extraordinária e original, freqüentam cinemas e livrarias, têm enfim a percepção de que o mundo é mais do que a casa onde eles moram.
Viúvos, divorciados, solteiros, todos são impiedosamente descartados do convívio dos casais tradicionais, os praticantes da hipocrisia oficial, que algumas vezes só se mantêm casados porque moram no mesmo endereço.
Passo.
Maus fiéis amigos são os livros.
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A frase deve ser velha, mas eu ouvi isto hoje pela primeira vez e concordo: família é bom em álbum de fotografia.
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Por que, em certos períodos da vida, a gente não se lembra dos sonhos?
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Há meses em que não acontece naaaaaaaaaaaaaaada.....
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2001
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Estou aqui pensando sobre a liberdade de expressão.
Esta questão do livre-arbítrio já foi antes desmistificada por Schopenhauer, mas eu me atrevo a resumi-la em meus próprios termos.
A criança come o que a mãe oferece, veste o que colocam sobre seu corpo, brinca e estuda onde, com quem e quando os adultos à sua volta acham que é conveniente.
O jovem cresce e pode então escolher por qual time torcer. A TV, a rádio e os jornais divulgam uma variedade conveniente de nomes para garantir a ilusão da escolha. O processo é semelhante para outros itens de consumo. O importante é garantir que você acredite ter uma identidade e opções: suas músicas, seus livros, seus esportes, seus interesses, enfim, aí inclusos as suas idéias e o seu partido político.
O adulto enfrenta o mundo do trabalho. Suas funções, seus métodos e honorários seguem regras estabelecidas pelas leis ou consagradas pelos costumes.
Se os laços religiosos estão hoje um tanto frouxos, bem como os matrimoniais, é porque as malhas da mídia e da propaganda são mais persuasivas.
Todos os brasileiros são livres. A maioria o é para morar mal, comer mal, estudar mal, pensar pior e passar pela vida em filas para pagar impostos escorchantes ou candidatar-se a vagas mal remuneradas. Quase me esqueço da fila para assistência médica, com atalhos para a da funerária.
Ora, dirão, que exagero! As sociedades evoluem e a História registra as lutas de tantos para garantir o bem maior do ser humano: a liberdade. Tiradentes, a Princesa Isabel, Monteiro Lobato...
Inovadores e pioneiros, sem exceções, recebem como recompensa cadeia ou desprezo.
Ah!... Mas ... “Houve uma época áurea na História da Humanidade, na Grécia de Péricles....”
Onde havia escravos e Sócrates foi condenado a beber cicuta.
E agora que refresquei sua memória, eu lhe digo que não temo desafiar a ordem estabelecida, pois tenho o salvo-conduto perfeito: sou poetisa.
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Ah! Como eu gostaria de viver como Tolstoi! “E o conde retirou-se para suas terras... onde isolou-se por três anos, a fim de escrever um livro...”
Invejo todos os ttt de Tolstoi. Tempo. Talento. Tenacidade.

Estou em uma escola, tentando vender um curso. Tenho uma palestra marcada e estou de short azul, por isso vou para casa trocar de roupa. Ao entrar em meu carro, junto com minha amiga Cláudia (ela está desquitada e é muito promíscua, sai com o primeiro homem que a convida em qualquer baile, vai a todos os bailes) descubro que meu carro foi arrombado, e a chave de ignição foi trocada. Minha antiga chave não funciona, mas a nova, diferente, está no contato e funciona. Terei de trocar o segredo, pois o arrombador está com a cópia da nova chave. Um homem sai com uma criança, de bicicleta, do estacionamento, à minha frente; são apenas vultos escuros. Sinto em meu corpo que fui estuprada e que a lembrança do fato foi retirada de minha mente.
Cada sonho...
Carro arrombado, chave trocada. Uma abertura foi forçada em minha vida, de forma violenta, oculta e amnésica.. este sonho pode ser a representação de um trabalho inconsciente. Uma nova direção me foi imposta. Qual? Como? Por quem?
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Os carros de minha infância eram vistoso, com nomes velozes: Impala, Jaguar. Havia o pretensioso Aero-Willis, com rabo de peixe, um luxo!
Passava um carro na rua, a molecada gritava – que, naquela época, a rua era o parque temático da infância. A gente corria à janela para espiar quem era o orgulhoso felizardo que fingia ignorar os olhares cobiçosos das mocinhas namoradeiras.
Saíam da moda os carros compactos com janelas estreitas e bancos inteiriços, ótimos para namorar. Imperavam os fusquinhas. Os remediados se contentavam com os pés-de-boi, sem acessórios, quase que só um banco sobre quatro rodas. Mas rodava!
E o que dizer daquele carrinho achatado com nome de iniciais, o DKV, que escondia o motorista quase rente ao chão? O distraído que se colocasse atrás de um caminhão corria o risco de acabar esmagado, pois ficava literalmente invisível.
Inesquecível o simpático Romiseta, o carro dos egoístas, onde só so apertava um.
Carros, como toda novidade, eram a fascinação do momento.
O formidável é que se estacionava em qualquer canto, o tráfego era livre, não havia pedágios nem flanelinhas nem consórcios. Os manobristas que nos recebiam à porta dos teatros, hotéis e restaurantes exibiam sorriso e uniforme, e a gente se sentia tolamente importante.
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Mamãe está doente. Veio morar conosco por uns tempos.
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A filha do Sílvio Santos foi seqüestrada. Minha mãe, que adora uma notícia policial, fica o dia todo ligada na TV para ouvir todos os detalhes e, quando chego em casa, tenho de ficar educamente escutando.

O curioso, no seqüestro da filha do milionário apresentador de TV foi o motivo que os seqüestradores alegaram para o crime: nada mais, nada menos que benemerência. Isso mesmo: caridade, amor ao próximo.
Vejamos: a moça que idealizou o atentado pretendia usar o dinheiro do resgate para distribuir cestas básicas para os pobres. O resgate sendo R$500 000,00, a cesta básica a R$20,00, serão 25 000 cestas básicas! Para tanta generosidade , só mesmo um marginal espiritualizado. Pois se o executor do plano foi nada mais, nada menos que o filho de um pregador protestante, um irmão em crença da filha do empresário, bem como de sua mãe, apesar de o pai ser um judeu fiel seguidor da Torah. Coisas deste abençoada Brasil!
O seqüestrador teve a infelicidade de matar dois guardas que o perseguiam e teve também a curiosa idéia de refugiar-se – pasmem! – na casa do empresário, burlando cães, vigias e cerca eletrificada, conseguindo ainda a proeza de capturar o empresário como refém.
Moço de sorte, este, pois conseguiu garantia de vida – como se no Brasil houvesse pena de morte – ao negociar suas condições de rendição com o governador.
O moço nem precisava ficar tão preocupado, pois é réu primário e sem antecedentes, nunca havendo até então causado qualquer problema, segundo o pastar, seu pai. Nada mais que algumas bobagens de adolescente, como a polícia apurou em seus arquivos: uso de drogas, tráfico de maconha, cúmplice em um assalto à mão armada, receptador de objetos roubados, comércio ilegal de armas, coisinhas à toa, está-se a ver.
Há a atenuante de o pobre moço estar passando por uma ‘crise existencial grave’; morando em uma sólida e boa casa em bairro residencial de classe média alta, na capital, filho de pais estáveis e cursando faculdade particular. A explicação? Só mesmo um coração de mãe para um comentário desastrado deste!
A namorada, mentora intelectual do crime, entregou-se em prantos, afirmando ter sido sempre gentil e amável com sua vítima, chamando-a apenas pelo carinhoso termo ‘princesinha’. Que a princesinha estivesse permanentemente sob a mira de duas metralhadoras é um mero detalhezinho irrelevante.
O casalzinho caridoso é tão generoso que tinha já planejados cinco outros seqüestros de famosos ricos, tendo já alugado casas para o cativeiro, nas quais a polícia encontrou um arsenal bélico.
Os dois estão obviamente tristes, lamentando as cestas básicas não distribuídas.
Na seqüência da grande publicidade que a mídia deu ao caso, seguiu-se o seqüestro de uma família de cantores, os Gordinhos Talentosos.
Este caso é cômico, pois tendo o seqüestrador seqüestrado a família toda incluindo o seu agente, não sabe agora com quem negociar o resgate. Por outro lado, este seqüestrador em particular não passa por nenhuma crise grave, já que não é sequer socializado, é excluído mesmo, exclusão perene e estável.
Os brasileiros, que não têm jeito mesmo, e que fazem piada por tudo, já estão por aí falando que ao final do seqüestro a família vai mudar o nome para os Magrinhos Talentosos ou então os seqüestradores já terá gasto o valor do resgate em comida
Muita gente acredita que a questão por trás dos seqüestros seja mesmo comida, e eu concordo.
Para evitar tais desgraças, há, sim, que se alimentar... AS ALMAS.
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Estou aqui a me lembrar de quando eu era criança e vivia alguns momentos mágicos:
Foi uma festa a ida à praia à noite, de maiô, chinelinho, baldinho e pazinha.
Sim, era noite. Uma noite quente de verão, sem lua, o céu coalhado de estrelas e o forte aroma de damas da noite a enfeitiçar.
Minha tia estendeu a esteira de palhinha no passeio, e nós, crianças, atacamos a areia.
Os homens se se afastaram, iam jogar futebol. Alguns carros estavam na areia. Naquela época, não havia ainda iluminação, e o farol dos automóveis é que clareava o local do jogo ou do churrasco. Senão, era a noite plena, o rugir do mar nas trevas abaixo do manto de estrelas.
Passou a hora de ir dormir – coisa inusitada – e nós brincando ferozmente, a construir ruas e ruas de casas moldadas nos baldinhos, com portas e janelas desenhadas com as pás e decoradas com conchas.
A tia contou estórias e cantou uma música incrível sobre um grão de areia que se apaixonara por uma estrela.
Quando os homens voltaram, tão ou mais sujos que nós, fomos todos ao mar.
Bem lá no fundo, além da zona de arrebentação, ouvindo as ondas que estouravam depois de passar por mim, firmemente segura pelos braços, eu flutuava na água escura e morna, oscilando nas marolas.
Quando sente aquela cosia deslizante e dormente em minha perna, como gritei! Cardumes pulavam à nossa volta, prateados e ariscos, e alguns peixes me tocavam e mordiscavam., fazendo cócegas.
Como rimos, adultos e crianças, saboreando aqueles três gigantes: o mar, o céu, a noite.
Em casa, mais tarde, o banho quente e o sono das pedras. Ainda sonho, como o poeta:
“Eu me lembro! Eu me lembro!
Era pequeno e brincava na praia...”
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Hoje, dois aviões se chocaram contra o um alto prédio em NY.
Quando cheguei em casa, sem nada saber, mamãe estava de olhos grudados na telinha, na maior ansiedade, curtindo o terror como só ela sabe:
- Filhinha, que coisa horrível, NY foi atacada.
E eu, ao ver as chamas e as pessoas correndo e o repórter gritando: quem ousa atacar os EU?, não me contive e deu o maior berro de alegria espontâneo:
- Bem feito!!! Eles merecem!
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Contratei como faxineira uma mulher simples a quem dei uma instrução também bastante simples: “Capriche na limpeza da cozinha”.
Saí cedo pela manhã e retornei ao fim da tarde; ela, já de saída, explicou meio atrapalhadamente que voltaria no dia seguinte para terminar o serviço.
Entrei na cozinha e levei um baque - a mesma sujeira da manhã, e de quebra a minha área de serviço em completa bagunça. O banheiro não estava em melhor estado. Intrigada, entrei na biblioteca.
Que susto! Todos os livros estavam fora de seu lugar habitual. Sócrates estava filosofando sobre os prazeres da mesa e meu Vade Mécum descansava na mesinha do telefone.
A curiosidade foi a única explicação que me ocorreu para semelhante desatino.
Lembrei-me de uma antiga criada, de quem suspeitei, pensando que roubara alguns de meus livros. Eu tratava de arrumar um meio de recuperar os meus companheiros quando eles reapareceram na estante, exatamente nos mesmos lugares de antes. Tratara-se tão somente de um ‘empréstimo’ e a garota ficou toda feliz quando eu expliquei que ela podia perfeitamente ler o que bem entendesse depois de terminado o serviço enquanto aguardava o ônibus escolar.
Pela vida afora muita gente, simples ou não, já se deliciou aventurando-se pelas minhas estantes.
É inevitável o fascínio da palavra escrita. Já dizia Castro Alves:
“O livro caindo n’alma...”
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Burca à brasileira
“Cada povo tem o governo que merece”, resmungava meu pai, a cada vez que se descobria alguma corrupção no governo. Externava assim sua negativa crença de ser o povo brasileiro ignorante e preguiçoso.
Assistindo inúmeras reportagens sobre o Taliban, esta frase de meu pai volta-me à lembrança. Imagino algum regime fundamentalista a invadir o Planalto e a impor a tal da burca à geração Pá Tropí.
A turma do deixa disso daria uma gargalhada. “Fala sério!” ressoaria da Amazônia aos pampas.
Uma ala de burcas poderia sair às ruas em alguma escola carioca ao som frenético de um samba, mas seriam burcas irreverentes, transparentes, agradecendo a Alá pela nudez belíssima de sua criação.
Um mulá proibindo música, instituindo rezas obrigatórias...aqui, onde os cultos são generosos em danças, cantos e sincretismo?
Enclausurar crianças em madrassas? Ingenuidade de quem desconhece nossos meninos de rua.
Armar os homens? Prevejo nas praias, tomando água de côco em mínimas sunguinhas, só pra contrariar, Os Filhos de Gândhi com todos os seus simpatizantes.
Nem pelos lados do agreste os radicais mulçumanos teriam melhor sorte. Se insistissem, descobririam a fibra do sertanejo, antes de tudo um forte, invocando ‘meu padrim Padre Cícero’ e lutando até o último homem. Na caatinga, sem cavernas aonde se abrigar, pobres árabes! Os quengos e os carcarás levariam vantagem.
- Ouçam o que eu exigo! – gritaria o mulá, roxo de raiva, e logo descobriria que, no Brasil, o que político fala não é para ser levado a sério.
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Reflexos na vidraça:
Hoje pela manhã, estava eu a limpar as minhas vidraças quando vi uma estranha imagem no vidro.
Lembrei-me de imediato das últimas notícias que chegaram esta manhã de Ferraz de Vasconcelos. Um senhor olhou pela janela e viu nela estampada nada mais nada menos que... um elefante! Lembrou-se então do deus-elefante Ganesha, que de certo usava deste artifício para convidar os brasileiros a se converterem ao hinduísmo. O bispo, ao ser interrogado, respondeu cautelosamente que aparições e milagres não são exclusivos da igreja católica, podendo o Altíssimo manifestar-se a qualquer povo da maneira que lhe for mais conveniente, e colocou à disposição a equipe de especialistas que está examinando a imagem de Nossas Senhora, para também estudar a questão do elefante. O Padre Quevedo nem se dignou a examinar esta imagem, que para ele tudo naõ passa de uma mistura de desinfetante com excesso de imaginação. Ocorre que na casa em frente, um árabe encontrou no vidro de sua porta a imagem de um homem de turbante montado em um camelo e jura pelo Alcorão tratar-se do profeta Mohamed. Em São Miguel Paulista, um estudante de Història encontrou espantado a figura de Dionísio, taça em uma mão e um cacho de uvas na outra, rindo para ele do vidro do espelho do banheiro. O rapaz pergunta-se se os deuses do Olimpo estão querendo retornar à Terra.
Quanto à imagem em minha janela, não chamarei a rede Globo nem os repórteres de A Tribuna, pois reconheci de imediato a máscara de Luke, o deus viking das brincadeiras e das trapaças.
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Refletindo sobre a guerra do Iraque, sinto-me mal.
Mulher-bomba, impludo. O terrorista número um sou eu. Morte a mim!
Enquanto meus amigos se horrorizam com as cenas da guerra, eu me calo, escondendo meu secreto desejo de morte e ataque, que me fez gritar ‘Bem feito!’ no primeiro segundo em que vi as torres gêmeas do World Trade Center desabaram. Verdade que no segundo segundo eu me dei conta de que lá estavam pessoas comuns, mas afirmo que eu dançaria de alegria se lá estivessem apenas Bush e seus falcões.
Passo pela vida conservando a capacidade de indignar-me contra a opressão, o desrespeito, a maldade.
O mundo é maya, ilusão.
Vaidade das vaidades! Cristo aconselha a perdoar os inimigos. Buda pregava a compaixão. E eu?
Eu fervo do mais ardente desejo de carnificina e sangue. Quero Washington em chamas. Mahatman em ruínas. Generais americanos condenados ao fuzilamento como criminosos de guerra.
Ai de mim, impotente sou! Ai de mim, que só posso criar um mundo melhor através de meu exemplo. Que exemplo?!
Preciso destruir o inimigo numero um, já!
E ouço Nietzsche: ‘procuravas o teu pior inimigo e encontraste a ti mesmo...’
Narciso, olho meu reflexo.
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Comentário de mamãe, hoje cedo, a suspirar:
- Que monotonia, né? Já acabou a novidade da guerra, não tem mais nem um seqüestro novo, nenhuma noticia emocionante na TV...
ai, humanidade, estás perdida...
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O espanhol me encontrou na praia e puxou conversa e eu estiquei o assunto em parte porque ele era simpático e em parte para quebrar meu padrão de mulher séria educada por freiras que não conversa com desconhecidos.
Ele comportou-se como um macho padrão: exibiu-se alongando os ombros, abrindo o tórax e sorrindo; exibiu-se falando de seu dinheiro, de seu próprio negócio, de sua profissão, joalheiro, de sua família, era viúvo, de suas propriedades no plural, plural mesmo e em sua nacionalidade européia.
O espécime disponível casualmente comentou que se mudaria para o Brasil caso se apaixonasse por uma brasileira, confessou estar procurando uma companheira e então perguntou se sou casaca.
Menti que era; a conversa voltou ao terreno neutro dos belos jardins de Santos e das areias ardentes de Guarujá e passei a tarde a psicoanalisar que acesso de loucura impediu-me de atirar-me aos braços do europeu rico e famoso e devorá-lo com saudável apetite tupiniquim. Auto-estima baixa ante um homem europeu, rico, bonito e....interessado em mim??? Afinal, minha idade não mais permite-me o luxo se a esmola parece grande demais.
Só se...
Meu inconsciente certamente tem algumas boas razões para tal ato aparentemente suicida. Talvez o longo rabicho que pendia da nuca do homem, semelhante ao daquele meu vizinho tão bonzinho e tão travesti, ou um olhar de esguelha, ou quem sabe o sotaque, que soava mais para o baiano que para o castelhano.
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Äna äm bidros arabi, habiba.
Creio mesmo ser eu a única garota do grupo que realmente prestava atenção às aulas de árabe e à cultura. As outras limitavam-se ao habib (querido) e ocupavam o tempo a lançar olhares lânguidos aos rapazes, imaginando-se sedutoras odaliscas em românticas tendas à sombra de românticas palmeiras em românticos oásis.
Jamais namorei moço algum da colônia libanesa. Acredito que eles preferiam as moças de cabelos longos e idéias curtas. Eu usava cabelos curtos e tinha o curioso hábito de raciocinar.
Uma amiga casou-se com um árabe, aos dezesseis anos. Com sorrisos, ele a convenceu a usar vestidos apenas, porque assim ficava mais bonita. Para que continuar os estudos, se ela seria mais útil aos filhos em casa? Sempre que combinávamos algo com a turma, ele a raptava para um programa mais interessante – a dois, naturalmente.
Ela estava muito feliz em seu primeiro ano de casada. Recebia regularmente flores, jóias e bombons. Tinha `disposição cozinheira e arrumadeira; semanalmente iam à sua casa a manicura, a cabeleireira e a esteticista. As compras eram solicitadas por telefone e entregues em domicílio; nada daquela chatice de ir ao açougue, à feira, ao supermercado. Nem sei se ela soube que deixamos de visitá-la por proibição expressa do marido.
Soubemos por uma prima que ela embarcou entusiasmada para o oriente, prometendo voltar com dúzias de tapetes e especializar-se em culinária árabe. Ela nem sabia que a Pérsia hoje chama-se Irã e ir-se embora para Pasárgada não é lá tão agradável quanto no tempo do grande rei Ciro. Ela rápido descobriu que os tapetes não são mágicos, a fumaça não sai de lâmpadas encantadas e o único gênio que veio em seu socorro foi seu talento de Sheerazade, com o qual ela adormeceu o marido pelo tempo suficiente para fugir até a embaixada.
Escapei de destino semelhante ao conhecer um magnífico, rico, culto e charmoso médico inglês em partida para o Iraque, onde por dois anos iria pesquisar um raro tipo de anemia. Sua esposa deveria conformar-se em permanecer em casa a maior parte do temo, sair apenas envolta em véus e, é claro, era imprescindível não temer os bombardeiros. Foi assim que descobri que uma solteirona pode, sim, dizer não ao único pedido de casamento recebido em 35 anos.
Descobri também que sou discriminadora. Discriminação, segundo o Aurélio, é ‘perceber as diferenças’. Permito-me o direito de perceber as diferenças e escolho – faço mesmo a mais absoluta questão de – ficar com meus iguais.
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007, dois zeros à esquerda
Quem diria, eu, cidadão comum, promovido a agente secreto.
É assim que me sinto, cheio de senhas, algumas complexas, com frases secretas e números que equivalem a letras e mudam a cada acesso.
Diariamente executo elaborados rituais em complexas máquinas que interagem comigo através de painéis eletrônicos com cores e sons; preciso apresentar crachás, ser microfilmado, atravessar portas que automaticamente se travam enquanto sou vasculhado por células fotoelétricas. Tudo isto para fazer coisas banais como pagar o condomínio, ir ao dentista ou depositar um cheque em minha própria conta.
Se utilizar meu computador para ler um simples jornal, até para isso, preciso de uma senha e de uma autorização.
E o que dizes da lista telefônica de cartões? De crédito, de bancos, de farmácias, de lojas, de convênios, vale alimentação, Smiles, Smartclub...ufa!
A vida antigamente, quero dizer, há dez anos atrás, era tão simples...
Hoje tenho um caderninho de bolso onde anoto todas estas senhas e códigos, pois são dezenas, periodicamente trocadas, num rompante de incompreensível sadismo. Haja memória!
Não corro perigo de perder minhas economias nem minha privacidade em caso de ter minha caderneta surrupiada, não! Pois todas as minhas senhas estão invertidas, trocadas e codificadas por um sistema secreto que inventei e não conto para ninguém nem vendo por dinheiro algum. Vai que alguém descobre que meu sistema de contra-espionagem é melhor que o deles! Aí, sim, é que vai ficar impossível pagar minha conta de luz.
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Um general deveria ser, antes de tudo, um enxadrista todo enxadrista sabe que o erra está no primeiro lance. Para não perder, basta não começar a guerra.
No princípio era o caos. E ainda é. O equilíbrio tende à entropia..os fractais têm suas próprias leis, ainda que não compreensíveis para os humanos. Nosso cérebro sofre da ansiosa mania de tentar colocar em lógica seqüencial nosso lar aconchegante, o Universo. Deveríamos antes nos deixar levar como uma folha ao vento, sem se importar muito nem com o destino nem com o percurso.
Afinal, a folha não controla o vento.

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Eleições 2002
Por vinte anos votei no PT.
PT roxa. Convicta.
Agora assisto assustada a mudança do discurso do já quase eleito presidente Lula.
O sujeito está-se bandeando para o lado dos opressores.
FHC pode sair feliz, com a conversão ideológica de seu adversário.
E nós, funcionários federais, nos ferramos, com mais um ano sem reajuste salarial.
Se eu estiver certa, valei-me, Santa Rita dos Impossíveis.
Já comecei a procura um novo emprego. De preferência, no Canadá.
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Releio este diário e percebo quão pouco valor eu pareço dar às pessoas! Vivo mergulhada no mundo das idéias. É onde encontro prazer fora do real. Estamos em uma época descartável, e as relações humanas tornaram-se descartáveis. Isso esfriou o quê eu sentia na companhia dos outros. Porque sou uma pessoa leal, de amigos seletos e que acredita que o amor é para a vida toda. Nos livros dos séculos passados encontramos amigos que se distanciaram e mantiveram correspondência por anos; amantes que definharam de paixão, morrendo logo após a sua amada, inconsolável. Ligações fortes.
Se há o mínimo obstáculo, o Romeu de hoje consulta sua agenda e telefona para a próxima. O Hamlet de hoje talvez considere a atitude de sua mãe um pouco exagerada, mas continuará sua doce vida com Ofélia, que os assuntos de seu pai não lhe dizem respeito.
Quando percebi que os ex-colegas de escola não me visitavam, sofri. Aliás, nem telefonavam nem respondiam e-mails; ocasionalmente comentam, se insistimos em manter contato:
Pois é, você sabe, agora a vida nos separou e nossos caminhos não se cruzam mais...
E se por acaso voltam a se cruzar, a pessoa que manteve silêncio por anos, morando no mesmo bairro, de repente invade minha caixa postal, meu minha secretária eletrônica, minha casa, me joga confete e declara alto e bom som que ‘somos grandes amigos desde a infância’, como se aqueles anos todos de afastamento não contassem.
Os homens definitivamente são de outro planeta. Quando algum deles tenta me abduzir, dá interferência na transmissão e a nave mãe desaparece.
Assim, eu prefiro os bichos e os livros.
Os filhos, sempre tive em mente que as criei para o mundo. Elas não se interessam pelos meus sentimentos ou pensamentos e às vezes nem mesmo pelas minhas opiniões.
Tenho dado o melhor de mim mas não obtive o que esperava: o companheiro, uma casa confortável, um círculo de amigos leais, reconhecimento profissional – isto é piada, ah,ah,ah. Quando olho em volta, percebo a mesma situação em quem convive comigo, ou com freqüência pior, um alcoólatra nesta casa, um viciado em drogas naquela, desempregos e demissões. Quando me lembro da geração de meus pais, dou-me conta de que a realidade era outra, naquela geração uma pessoa podia realizar seus mais prosaicos projetos: a casa própria, o negócio próprio, o filho criado e formado, enfim, alguma satisfação simples na vida. A minha geração foi desafortunada, meros sobreviventes.
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Vou-me em busca de outros ares
Adeus, palmeira e sabiá.
Vou em busca dos Palmares
Que não encontro por cá.
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A vida tem sido para mim uma bicicleta ergométrica. Algumas vezes foi ladeira abaixo. E eu quero a vida das águias, um salto no abismo e vôo livre.

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FIM