domingo, janeiro 02, 2011

Hermann Hesse: uma história de amor à primeira palavra

Apaixonei-me por Hermann Hesse aos quinze anos de idade, ao abrir por acaso um de seus livros e deparar com as palavras:
Teatro mágico – só para loucos.
Comprei o livro, que devorei ansiosa, para descobrir que o tal teatro mágico, dentro do qual o personagem senta-se diante de um tabuleiro de xadrez para elaborar sua própria vida. O título era O Lobo da Estepe, e, na época, eu também era uma loba solitária, a uivar incompreendida pela vida. (por que será que, na adolescência, temos esta incrível necessidade de sermos rebeldes incompreendidos?)
Hermann Hesse influenciou profundamente meu pensamento adolescente. Copiei e colei na porta de meu quarto o poema chinês que ele colocou à entrada de sua casa, clamando por solidão e por paz, pois, em minha adolescência, eu tinha oitenta anos. (hoje tenho quinze, quem desse que a idade da alma á cronológica?)
Em meio ao sofrimento do pós-guerra, este alemão revela a esperança do gesto solidário, esperança que brota de nossa própria atitude interior de tolerância e aceitação do outro, da vida.
Homem que muito sofreu, adquiriu sabedoria, pois o sofrimento é alquímico: a dor é a pedra filosofal que transmuta o barro da ignorância no ouro da espiritualidade.
Hesse foi um buscador e vários de seus livros são de cunho autobiográfico, mas daquela biografia interior, narrando as peripécias da alma em sua busca por um sentido.
‘Esta foi a história de minha mocidade. Quando a relembro, parece-me que foi breve, curta como uma noite de verão. Um pouco de música, um pouco de amor, um pouco de vaidade – mas foi bela, generosa e colorida como uma festa do Elêusis. E apagou-se, rápida e miseravelmente como uma vela ao vento.’
É Peter Carmezind que mais me toca, a história do homem simples, obscuro, que não sabe expressar-se por palavras e contudo é cruelmente dilacerado pelo instinto da beleza, pelas emoções que ele não consegue ( e deseja desesperadamente) transmitir:
‘Que significado tivera minha vida e por que tantas alegrias e tantas dores haviam pesado sobre mim? Por que tivera eu a sede do verdadeiro e do belo, quando continuava ainda sequioso?... E por que motivo Deus, cujos desígnios não compreendemos, colocara dentro de meu coração aquela ânsia abrasadora de amor, já que ele me destinara a uma vida de homem solitário e pouco amado?’
Uma leitura complexa, enriquecedora.
Experimente.

Quem escreve?

Alguns escritores bem comportados e politicamente corretos conseguem escrever por encomenda, enquadrando-se nas regras do mercado e na pauta do público, vendáveis e previsíveis textos.
Por outro lado, há escritores malditos, que são escritos por seus próprios textos, que ouvem vozes interiores, que alternam períodos de febril atividade com outros de apatia total, que escrevem coisas inadequadas e revolucionárias, incomodam, transformam e profetizam paradigmas, vislumbram mistérios, constroem ou derrubam impérios.
Sócrates, o filósofo, tinha lá o seu demônio interior. A palavra daemon, naquele época, tinha mais o sentido de gênio,não sendo considerado nem bom nem ruim; o daemon é a chama totalmente neutra, que tanto pode clarear o caminho quanto iniciar um incêndio.
Também tenho um daemon, uma chama acolhedora, que, criatura gananciosa que sou, espero que um dia seja minha pira. Por enquanto, a velinha ainda cintila tímida.
A idéia está lá, e é boa.
Começo pelo final, que é o objetivo principal de toda história: surpreender o leitor, provocá-lo.
Uma história pode começar por vários pontos. O enredo pode percorrer caminhos variados. Cada estilo valoriza, destaca ou minimiza diferentes conotações.
Há personagens que copiamos da vida, outros há que se impõem e vão falando e acontecendo à revelia do autor.
Histórias paralelas e acessórias, distribuídas sabiamente pelos capítulos, enriquecem a trama, levando o leitor a vaguear por temas paralelos previamente relacionados.
E então, o livro estando pronto, eis que o autor se surpreende. A idéia, que está lá, e é boa, funciona como pano de fundo para uma outra coisa, esta sim, o verdadeiro enredo, que se escreveu nas sombras.
O autor se descobre mero instrumento e humildemente se rende ao verdadeiro desconhecido autor de sua própria obra.

Um garota de juízo

A religião não permitia, dizia ela, pois, antes de casar, era ‘pecado’.
Ele esperava.
Alem disso, dizia ela, devia obedecer aos pais.
Ele esperava.
No começo do namoro ela dizia que não podia por ser de menor idade.
Ele esperava.
Depois dos dezoito ela mudou o discurso: não tinha independência econômica.
Ele, apaixonado, esperava.
Ela divagava: não estava pronta, não era a hora certa...
Ele esperava.
Há que se ter controle sobre as emoções, explicava ela, e não comportar-se como uma maluca.
Ele esperava.
Ela bem que o julgava digno de seu amor, um homem íntegro, atencioso, trabalhador, gentil.
Um dia, surgiu o Outro: mundano, boa prosa, risonho, casado, promíscuo, fascinante, olhos azuis e irresistível sorriso sedutor.
Ela sentiu o desejo que irrompeu como um furacão, doido, urgente, e correu alucinada pela noite, indefesa, rendida, usando os últimos resquícios de sanidade que lhe restavam para atirar-se, em um frenesi, nos braços dEle, que, sem entender nada, ficou, no entanto, imensamente feliz.

O que é o amor, afinal?

Quando se esbarraram em uma esquina da vida, ela pensou ter agarrado seu homem.
A princípio ela achou divertidas certas atitudes extravagante da parte dele, que ligava só para ouvir a voz dela ou para dizer boa-noite. Ele adorava telefone (ela detestava!)
Ele a levava a teatros e concertos, durante os quais, alheio aos olhares furiosos das pessoas ao redor, ele falava sem cessar, como se sentisse uma compulsão em transformar seus pensamentos em comentários.
Enquanto ele declamava sua paixão em versos, ou em inflamados discursos amorosos, ela, que preferia a silenciosa comunhão com o universo, sentia-se cada vez mais frustrada, buscando em vão abraços, carícias e afagos, decepcionada por não haver resposta a seus cúmplices apertos de mão.
A incompatibilidade era profunda, visceral.
O amor, para ele surgira ao primeiro som, para ela ao primeiro toque.

Ritual - crônica

Ela desistira de fabricar aquela onda inexistente em seus cabelos. Inútil. Lá no íntimo sentia a mesma tristeza.
A espera. Parecia-lhe que toda sua vida fora sempre uma espera, uma expectativa de algo que cada vez afastava-se mais: quando eu fizer quinze anos, quando eu entrar na faculdade, quando eu me formar, quando, quando... meu Deus, quando iria sentir, enfim, que a vida lhe pertencia?
Repetia-se a mesma agonia de todos os anos. Desenrolava-se o filminho de seus atos nos últimos 365 dias, projetando-se em uma velocidade estonteante e nitidez imperdoável.
Enfim, deixara ela sua marca no mundo?
Por que este coração exigente, rebelde, colocando sempre tão alto seus ideais? O que é esta vida, afinal?
‘Pare, pare, tempo! Fique aí parado enquanto procuro dignificar minha existência, deixe-me fazer qualquer coisa que a torne diferente do nada.’
Vinte anos. Uma eternidade. Um nada.
Já os parentes escolhiam rosas brancas para Iemanjá. Iam todos à praia.
Ela pegou uma vela azul e três botões de rosa, rumo à água.
Vivia agora o melhor momento, acesa a vela, jogadas as flores, caminhando à beira d’água a olhar as estrelas, sentindo a carícia envolvente da brisa, a maciez da areia molhada sob os pés, a melodia das vagas sob a imensidão da noite.
De volta à casa, dez segundos para a meia-noite, alguém passou correndo por ela, com um cacho de uva na mão, uma taça de champagne na outra, a gritra: ‘Viva o Ano Novo!’
Risos, mil abraços e felicitações, algazarra.
No jornal do dia seguinte, ao lado de uma cegonha carregando um nenê no bico, letras enormes e festivas:
‘UM PRESENTÃO PARA VOCÊ. UM ANO INTEIRINHO QUE NINGUÉM USOU.’