domingo, agosto 29, 2010

Algumas histórias de uma casa feliz


Introdução

A casa estava ás escuras. Pela janela aberta, no crepúsculo da tarde, a paisagem chuvosa esfumaçava-se em um degradée de tons cinzentos – mar, céu, nuvens, areia.
Silêncio.
As duas moças avançaram silenciosamente escada acima. Em breve ouviram a voz da mae, a gesticular, entre sussurros e suspiros.
Catarina acendeu a luz. Carolina censurou:
De novo, mamãe, falando sozinha!
A senhora sorriu, murmurando:
Quem disse que estou sozinha, querida? Estou aqui conversando com meu passado... com meus mortos queridos... meus fantasminhas... – piscou um olho, para que a filha percebesse que estava a brincar, não fossem pensar que a mãe delirasse, - Esta casa está tão cheia de lembranças....
As moças, ao mesmo tempo:
- É verdade, lembra daquela vez...
Risos.
Eram boas lembranças.




Histórias de crianças


Sentadinha na janela

Mãe de primeira viagem leva cada susto!
Lúcia estava a varrer flores no jardim quando levantou os olhos e o coração congelou de pavor. Na janela do andar de cima, a pequenina Catarina, de dois anos balançava os pezinhos.
Silenciosamente, pois, se gritasse, a garotinha poderia assutar-se e cair, Lúcia subiu as escadas com lágrimas nos olhos, aproximou-se por trás da filha e abraçou-a, retirando-a carinhosamente do parapeito.
Piu piu! – apontou a pequenina.
Ah, os passarinhos – Lúcia ria como louca – Vamos ver os passarinhos lá no jardim, ao lado da mamãe,
Abaixou a vidraça – ela sempre deixava as vidraças arriadas, quem tem criança nunca pode descuidar de nada. Esquecera uma vez....e a pequenina, muito esperta, empurrara um banco até a parede para alcançar a janela.
Na mesma tarde, Lúcia providenciou a colocação de grades em todas as janelas da casa.
Na semana seguinte, Lúcia estava a varrer folhas no jardim, quando levantou os olhos e o coração bateu forte. Na janela do andar de cima, a garotiinha subia pela grade como uma aranham, jogando beijos para a mamãe lá embaixo....
Um minuto de descuido

Mãe não pode mesmo distrair-se.
E nem fora distração e ,sim, pressa.
Lúcia correra a recolher a roupa do varal, que verão em Santos é assim: o céu de cartão postal fica preto de repente e a tempestade cai antes mesmo do primeiro trovão; depois a chuvarada pára tão subitamente quanto começou, deixando ruas alagadas, pessoas encharcadas e varais ensopados. Ora, ao ouvir o trovão, Lúcia saiu da copa; ao retornar, não viu a filha, ouviu apenas sua voz alegre a exclamar:
Areia! Areia! – a pequenina pronunciava ‘aeia’
Uma nuvem de pó claro espalhava-se pelo ar. Um monte de pó, no chão, em frente à menininha, que sorria para a mãe na maior alegria, a brincar:
Paia! Painha! – ou seja praia, prainha...
Leite em pó. Lúcia deixara a lata aberta sobre a mesa e a menina a derrubara.
E Lúcia ficou entre o riso e as lágrimas. A cena era inesperada e engraçada, mas o trabalhão que teria para limpar a filha, o chão, a mesa....
E por enquanto era apenas uma, logo seriam duas...

Nova luz em nossas vidas

Catarina correu para a mãe, saudosa, e deu um passo atrás ao perceber o novo bebê. Ficou sem fala e sem ar.
Lúcia colocou Carolina no berço e pegou Catarina ao colo. Ficara pela primeira vez longe da filha, quase um dia inteiro. Começou a lembrar a menina das conversas dos últimos meses sobre a irmãzinha que chegara. A angustiada Catarina interrompeu:
Você não é mais minha mamãe?
Claro que sou sua mamãe, querida, e sou mamãe da Carolina também.
Catarina pulou do colo de Lúcia e correu para o colo do pa:
Mas o papai é meu!
Papai explicou:
Sou seu papai e papai da Carolina também.
Com os olhos vermelhos de lagrimas, a garotinha procurou pelo avô, a cujo pescoço agarrou-se a soluçar em desespero:
Mas o vovô é meu. Só meu, só meu, só meu.
Ah, o sofrimento infantil!
A voz forte do avô fez-se presente:
Vovô é só seu!
Como é que ele ia escapar desta afirmação desastrada era uma tarefa que ia mantê-lo ocupado pelos próximos anos.

Leituras familiares

Família que lê unida permanece unida – exclamava papai, nas manhãs de domingo, estirado em sua cadeira preguiçosa.
Mais que um habito, ler nesta família era um verdadeiro vício, um vírus que contaminava a todos.
Algumas famílias tem em suas casas um salão de festas, um porão para jogos, uma área para churrascos. A família Rodrigues tinha uma biblioteca.
As historias começavam no berço, com as cantigas de ninar, em que barcos singravam os mares azuis em noites de luar e gaivotas percorriam os céus nas asas do vento, acalantos diferentes das convencionais canções de terror sobre bichos papões.
As primeiras papinhas eram ilustradas com as historias do avô, quando o avô era pequenininho e as histórias do tio Juca quando era um garotinho.
Uma borboleta que entrasse pela porta no momento da refeição virava personagem. O jardim foi o nascedouro das histórias da borboleta azul, bailarina vaidosa; da borboleta branca, desobediente, que o passarinho comeu quando se afastou da mamãe, da borboleta amarela que não comia e ficou doente, e até, quando mamãe descobriu um casulo em um dos vasos, e acompanharam seu crescimento até sua moradora sair em uma manhã ensolarada, a história da lagarta triste que não sabia que dentro dela escondia-se uma alma de borboleta.
Quando começavam a engatinhar, as meninas ganhavam livros coloridos com histórias de bichos. Catarina preferia as aventuras do elefante que passeava pela beira do rio, e pedia que lessem para ela a mesma historia centenas de vezes com prazer imenso. Certa tarde Lúcia encontrou a filha deitada no chão, dormindo sobre a barriga do pai adormecido, com o livro na mão.
Ao crescer, as meninas inventavam suas próprias histórias, como aquela do macaco que comeu uma banana cascada, invenção de Carolina que fez os pais racharem de rir. Para Carolina era tão claro que, se havia frutas descascadas, por força havia também de haver as cascadas....
E houve a noite em que Lúcia, exausta, sentou-se para adormecer as filhas com a história do momento, Branca de Neve e os sete anões, e, a certa altura, surpreendeu-se com os protestos das meninas:
Não, mamãe, não!
Sonolenta, ela esfregou os olhos, dando-se conta de que ferrara no sono, e escutou, com espanto, o que as meninas diziam:
Mamãe, a Branca de Neve não entrou no disco voador!


Direto do céu

O melhor da casa era o lado de fora.
Na sombra da varanda havia a rede para as tardes preguiçosas. No corredor para a garagem o tio fizera para elas dois balanços, e haja vaivém. No jardim havia todo tipo de bicho miúdo e de matinhos que viravam comidinha, colares, brincos e pulseiras.
Certa tarde Carolina viu qualquer coisa no telhado. Bem grande. E como a mãe não conseguia ver debaixo o que era, o jeito foi acionar a vizinha.
É uma águia, Dona Lúcia, mas não tem perigo, não, deve estar morta.
Na verdade, o telhado começava a encher-se de urubus.
Podemos ir aí ver?
Espiando da casa da vizinha, por sorte um pouco mais alta que a delas, lá estava o pobre do bicho caído entre a calha e a primeira fileira de telhas, abrindo o bico ameaçador para cada urubu que tentava aproximar-se.
Lúcia chamou os bombeiros.
É um pássaro bem grande, não sei dizer o que é, mas está vivo.
Para a criançada na rua, foi uma novidade quando o caminhão de bombeiros chegou, rodou a enorme escada, a ave foi laçada pelo pescoço e colhida em uma rede forte. Os bombeiros disseram que iam levar a ave a um veterinário.
Era um faisão, que, depois de medicado e tratado, foi devolvido à natureza.
Fizemos uma boa ação, meninas – disse mamãe. – Devemos cuidar da natureza. As aves de rapina estão em extinção e devem ser protegidas.
Bem, os urubus, que ficaram com fome, não devem concordar.

Senhoras e escravas

Enquanto Catarina observava joaninhas e organizava corridas de caracóis, Carolina entretinha-se com as formigas. Estes bichinhos, inquietos e agitados, como ela própria, a fascinavam. Seguia as trilhas das formigas por entre os pedregulhos e plantas ate descobrir as entradas dos formigueiros.
No lado avesso de certas folhas, quer dizer, no lado protegido do sol, Carolina encontrava insetos brancos e gordos rodeados de formigas; ficou eufórica quando um professora explicou, em classe, que os pulgões eram como vaquinhas de formigas, que cuidavam deles como vaqueiros cuidam do gado.
Havia no jardim três tipos de formigas: uma bem miudinha, que preferia os muros a paredes, havia as vermelhas gordas e as pretas magrelas.
As pretas magrelas, compridas, eram nervosas e apressadas, brigavam muito entre si. As gordas vermelhas eram lentas como damas autoritárias, brigavam entre si e com as pretas. Algumas vermelhas tinham grandes ferrões nas cabeças e Carolina as chamava de guardas. Quando a menina batia na porta de um formigueiro vermelho com um pauzinho, as formigas comuns desapareciam dentro da terra e apareciam montes de formigas guerreiras. Havia carreiras de formigas vermelhas a carreiras de formigas pretas e carreiras mistas, em que só as pretas carregavam folhas.
Que curioso, as vermelhas escravizam as pretas...
Que bobagem, você não sabe de nada – Catarina dava de ombros.
Um dia, um documentário de televisão sobre a vida animal mostrou como as formigas vermelhas escravizam formigas pretas e as fazem trabalhar para elas. Carolina olhou para Catarina e não disse nada. Catarina baixou os olhos e também não disse nada.
Naquele dia Carolina aprendeu como funciona a mente de um cientista – observa e pensa. Naquele dia Carolina também entendeu uma frase que o pai repetia: o melhor livro é a natureza, mas é preciso aprender a ler.

Pensamento positivo

Certa tarde Lúcia foi surpreendida pelos gritos de Carolina:
Socorro, mamãe, tem um troço duro na minha boca!
Era o primeiro dente de leite que caía.
Lúcia correu ao banheiro, onde a menina se enfiara.
A pequena, otimista, tinha o habito de ver a vida sob seu melhor aspecto. Antes que a mãe chegasse perto ela já estava a sorrir, olhando o liquido vermelho que escorria de seus lábios e tirando lá suas conclusões:
Não se preocupa, não, mamãe, meu dente caiu mas saiu um remedinho junto...


Um safári na biblioteca

Nas tardes muito abafadas, o melhor lugar da casa era, de longe, a biblioteca, até porque era possível viajar nos livros até a terra dos pingüins e sentir frio.
Podia-se jogar dama, xadrez, ludo, dominó ou simplesmente desenhar e pintar na escrivaninha de papai, no grande bloco de papel de rascunho que ficava lá à disposição de quem quisesse.
Uma tarde, de um livro antigo folheado por Catarina, caiu um leão africano, na verdade, um selo amarelado de um pais desconhecido. Mamãe, chamada para ver, olhou e traduziu – o selo vinha de um pais chamado África do Sul.
Aproveitando a deixa, mamãe pegou o Atlas e mostrou, no mapa, onde ficava o tal país.
Os adultos da casa aproveitavam incidentes como este para ensinar as crianças a usarem o atlas, o dicionário, o ábaco, e conversarem sobre a historia da Humanidade – com h maiúsculo, sim.
Naquela tarde o selo gerou um grande interesse pela África, seu bichos, seus países, sobre os povos que vieram para o Brasil e contribuíram para a formação do povo brasileiro.
Carolina mal suportou esperar o retorno do pai – não havia celulares naquele tempo – para que ele contasse em que carta viera aquele selo. Quando papai chegou em casa, contudo, ficou surpreso, disse que emprestava seus livros a tantos alunos e amigos, e, assim, o mistério não foi esclarecido.
Mamãe opinou, romântica:
Melhor assim. Agora temos um fato misterioso em nossa casa. É como se morássemos em uma casa encantada.

Desta água é melhor não beber

A pequena Carolina respondeu ao garçom:
Quero pinga.
Isto aconteceu na primeira vez em que a menina saiu a almoçar fora com a família, e o avo afirmou que ela poderia pedir o que quisesse. Papai, entre o riso da situação inusitada e a vergonha ante os olhares espantados dos outros clientes, resolveu a situação pedindo suco de laranja.
De onde você tirou esta idéia, Carolina? Ninguém toma pinga lá em casa.
A pequenina explicou, candidamente;
Quando vamos buscar pizza lá no bar da esquina, sempre tem um homem servindo pinga no balcão. Eu queria experimentar.
Ora essa....
O avô costumava dizer:
Bebês chupam chupeta, adultos bebem cerveja.
Na verdade, para não ‘aguar’, as netas podiam, sempre que quisessem, dar ‘uma bicadinha’ em seu copo, só para sentir o gostinho. No fundo, ele esperava que o gosto amargo provocasse repulsa nas crianças.
Os antigos preocupavam-se muito em não aguar as crianças. Aguar era adoecer de desejo por uma comida ou bebida. O desejo reprimido matava, se não satisfeito a tempo.
A família redobrou a vigilância sobre as bebidas. O bar ficava trancado a chave e só era aberto em dia de festa ou se havia visitas. Ninguém consumia mais do que um copo de licor ou vinho, nessas ocasiões. E, nas festas, olho vivo em cima da Carolina.
Até a véspera de Ano Novo, quando, fechando o portão às costas do ultimo convidado, ninguém avistou a menina. Chama daqui e dali, e nada.
No salão de festas, uma fileira de copos e taças totalmente vazios, e Carolina, debruçada na mesa, com um bigodinho de espuma ao redor dos lábios. A menininha esvaziara o fundo de todas as canecas e ressonava gostosamente.
Desaguara...
O passarinho ingênuo

Mamãe gostava muito de pássaros e costumava pendurar comedouros e bebedouros no terraço para eles.
Quando as meninas arrumaram um cachorro, os passarinhos ficaram mais ariscos, pois o cachorrinho corria para pular nas avezinhas.
Uma tarde calorenta, contudo, Carolina estava modorrentamente estudando no sofá – traduzo: dormindo – com o cachorrinho dormindo sobre sua barriga, quando foi acordada por pequenos beliscões em seu braço. Surpresa, abriu os olhos e viu uma avezinha passeando em cima dela, bem ao lado do cãozinho, que, por sorte, não acordou.
Na tarde seguinte, indo tomar água, Carolina ouviu um barulhinho perto da porta, olhou para o chão e lá estava o mesmo passarinho, pasmem, bebendo água na gamela do cachorro.
Dois dias depois, Carolina chegou à conclusão de que o passarinho, definitivamente, era maluco, pois estava caminhando pelo chão da sala, à toa, indo direto em direção ao cachorrinho que, de tão espantado, nem se mexia.

O passarinho atrevido nunca mais foi visto, e não sabemos se foi devorado por algum outro bicho menos amistoso que o nosso filhotinho de cachorro.


Historias de jovens

A oportunidade bata à porta

A musica brasileira é maravilhosa, mas em algumas épocas parece que dezenas de gênios musicais pipocam com especai encanto. A jovem guarda, por exemplo.
Assim os jovens dos anos sessenta e setenta se consideravam – a Jovem Guarda.
Sua música causava furor nos famosos festivais da TV Record. As rádios difundiam musicas cujas letras eram consideradas irreverentes: ‘que tudo vá pro inferno’, ‘deixa que digam, que pensem, que falem’, ‘ vou mandar a maior brasa, mora’.
Hoje parecem palavras inofensivas, mas, para a geração de pais com postura e compostura daquela época, esta frase singela soava como uma ‘rebeliao’ neste país sem guerra. Lá fora, com a absurda Guerra do Vietnã, o caso era outro. Os Beatles e os Beatniks desafiavam governos, no embalo do movimento hippie, este sim, forte constestação política, levando jovens á prisão, propondo mudanças radicais no comportamento social, como famílias coletivas, paz e amor.
Carolina e Catarina estavam no quarto entretidas com suas coisinhas de adolescentes, quando os sons vindos da rua trouxeram o clima de euforia para dentro da casa – apupos, gritos, assobios, buzinaço, gritaria.
Eis que, apoiados ao portão, estavam nada mais nada menos que o rei Roberto Carlos e seu amigo Erasmo ao lado, os dois mais famosos cantores da Jovem Guarda.
Reconhecidos e perseguidos pelas fãs enlouquecidas durante um passeio a Santos, os dois pararam o carro e desceram para distribuir alguns autógrafos, bem em frente ao portão da casa de Carolina e Catarina.
As duas gritaram e debruçaram-se até quase cair da janela, em sue entusiasmo. Lúcia veio ver o que acontecia e lá ficaram as três à janela, a observar o populacho.
Ah, como eu queria um autografo deles!
E a timidez? Cadê coragem?
Lúcia empurrou as filhas com carinho:
É só descer, meninas.
Com as faces pálidas, a respiração suspensa, os coraçãozinhos saltando sob as blusas, chegaram no portão a tempo. Afinal, quem mais que elas tinha direito aos autógrafos? Era o seu muro, não? Nem conseguiam falar, só esticar as mãos com os bloquinhos e a caneta.
Roberto Carlos sorriu para elas.
Erasmo também.
Durante semanas, as meninas trataram o muro como um pagão trata um altar.

domingo, agosto 08, 2010

lembrança de infância

Ah! O sol de inverno
Que não aquece ninguém -
Só engana os tolos.


a minha prima me chamava para brincar lá fora: tira o casaco, pequena, não ve que está sol?
e eu ficava a tiritar de frio...e a malvada ria, ria...