terça-feira, janeiro 03, 2012

A moeda mágica do Juquinha

A moeda mágica do Juquinha

No tempo dos sonhos


Capítulo um
Juquinha e seus avós


Os avós de Juquinha moravam no interior do Brasil, no estado de São Paulo, em um sítio em Taiúva. Chamavam-se Dirce e Mário, e haviam sido professores, antes da aposentadoria.

Dirce e Mário haviam estudado História e Museulogia, lecionado em universidades importantes, realizado algumas pesquisas de campo, publicado trabalhos acadêmicos, enfim, haviam contribuído o seu tanto para melhorar o mundo, e todos os seus filhos e netos adquiriram, por convívio, o amor às viagens e a curiosidade pelas línguas, arte e cultura de outros povos.

Embora os avós não houvessem viajado muito pelos meios usuais– salário de professor no Brasil não é lá muito – haviam viajado, e muito, nos livros, filmes e computadores.

Sua filha caçula, ainda solteira, Lúcia, é que viajava muito, por ser solteira, e estava, no momento em que começa esta história, voltando de férias.

Juquinha, gauchinho de Porto Alegre, estava há dois dias em férias na casa dos avós, e esperava ansiosamente pelo retorno da tia, especialista na arte de contar histórias, e que chagaria naquela tarde. E Juquinha, como todas as crianças, saboreava com prazer as boas histórias.

Corria o mês de novembro, e, pela proximidade do fim do ano, naturalmente todos comentavam sobre os projetos para o ano novo, porém, desta vez, às vésperas de 2012, Juquinha começou a ouvir na televisão estranhos boatos sobre o fim do mundo. E foi falar com o avô, preocupado.

- No ano mil houve boatos semelhantes – tranquilizou o avô. – Muitos, desesperados, cometeram suicídio, muitos deram todo o seu dinheiro aos pobres, muitos se arrependeram de seus pecados e estou certo que alguns espertalhões andaram vendendo pedacinhos do céu, ou as tais bulas papais, que era o jeito da moda de os ricos comprarem o perdão pelos seus abusos.

- Também houve um boato semelhante em uma das vezes em que o cometa Halley passou pela terra – falou a avó – houve quem desse festas do cometa, que eram festas luxuosas em que as pessoas se despediam da vida, e afinal, o cometa passou, foi embora, e estamos aqui.

Então o avô contou para Juquinha sobre os fabulosos calendários maias, extremamente precisos; e sobre todas as profecias que haviam se referido a 2012, mas, veja bem, você sabe como são as profecias, sempre nebulosas, deixando espaços abertos para a imaginação, e de repente, tudo o que elas dizem é que um ano termina e começa outro.

- Você sabe, querido, há muito mistério neste mundo, muita coisa que o homem não sabe, e então, existem os cientistas, que estudam as coisas que podem ser vistas, fotografadas e documentadas, e há os místicos, que interpretam o que não sabem com toda sorte de símbolos, profecias e outras coisas que eu, como tenho a mente aberta, deixo na gaveta das idéias que estão esperando comprovação. Pois há mesmo coisas muito intrigantes em nossa história, como o mapa de Pire Reis, na Idade Média, um mapa cartográfico em que apareciam os continentes ainda não oficialmente descobertos pelos europeus, e que desenhava o planeta com uma precisão impressionante, visto de cima, sendo que na época não havia satélites, aviões ou helicópteros.

- E mesmo lá, onde sua tia esteve, na Nova Zelândia, há um mito muito curioso, dos primeiros povos que lá chegaram, há milhares de anos, pois o nome da ilha norte da Nova Zelândia significa peixe, porque ela se parece com um peixe, e o problema é que uma pessoa só pode perceber a diferença do espaço, e, pelo que sei, canoas não voam.

Juquinha ficou pensativo.

- Bem, vamos buscar sua tia – decidiu o avô – o ônibus deve estar chegando nos próximos minutos.

E assim, entraram todos no carro do vovô e foram buscar a tia com suas malas.

A rodoviária de Taiúva era bem pequena, e, sem bagagem, bastava andar três quadras para chegar em casa. Assim, logo que o ônibus vindo de Ribeirão Preto encostou, Lúcia pode ver a família acenando para ela da plataforma.





Capítulo dois
Juquinha e a tia Lúcia



Foi uma sucessão de abraços apertados e beijos afetuosos.

Lúcia era uma mulher esguia, ágil e risonha.

Seus amigos costumavam perguntar qual o segredo de sua aparência adolescente, e ela dizia que a convivência com seus sobrinhos a mantinha jovem.

Lúcia tinha cinco sobrinhos, e parecia destinada ao celibato; aproveitava sua liberdade para viajar, ler, e ajudar os irmãos com seus sobrinhos. Como Juquinha era o que morava mais longe, era o que mais tempo passava com ela, pois suas visitas duravam semanas inteiras.

E agora ele era o primeiro a receber as notícias e os presentes que ela certamente havia trazido em sua bagagem. Juquinha acomodou-se no banco de trás bem agarradinho na tia preferida. E o caminho de volta para casa foi rápido.

Vovó tinha já preparado uma mesa com coisas gostosas, e foi passar um café de coador bem quente enquanto Lúcia tomava um banho quente e colocava roupas limpas e confortáveis.

Juquinha ficou a folhear os livrinhos que a tia trouxera na bagagem de mão, para ir lendo durante o vôo. Eram todos em inglês, e ele só podia mesmo folhear, pois não entendia as palavras ali escritas. E Juquinha, que era um tantão preguiçoso na escola, começou a pensar seriamente em se dedicar a aprender línguas estrangeiras, pois estava vendo que precisaria delas para melhor aproveitar as viagens que pretendia fazer.

Lúcia desceu, sentaram-se todos à mesa e a longa conversa começou.

A moça havia ido a muitos lugares – estivera em Angkor, no Camboja, passara pela Tailândia, também na Ásia, onde vira os famosos templos budistas do Buda deitado e do Buda de jade, e também as belas praias do arquipélago Kho Pee Pee, que haviam sido destruídas pelo tsunami de 2004, e Juquinha havia visto alguma coisa a respeito na TV. E a tia fora também para a Nova Zelândia e para a Austrália, onde haviam cangurus – e Juquinha só queria mesmo saber dos cangurus.

Uma das boas coisas de se viver no século vinte e um é poder contar com a fantástica tecnologia dos computadores. Diariamente, vovô e vovó conferiam na internet se Lúcia havia postado fotos em sua página pessoal, e, quando Juquinha chegou, havia já para ele apreciar, alguns álbuns com nomes estranhos: Adelaide – Sydney – Angkor – Bangkok – Ko Pee Pee - Queenstonw – Fiordland e outros mais.

Para grande alegria de Juquinha, vovô selecionara para a tela de abertura do computador uma bela foto de uma mamãe canguru carregando seu filhotinho na bolsa.

Juquinha sentiu-se meio perdido com a conversa dos adultos, que falavam com familiaridade sobre locais que ele nem imaginava existirem. Quando a prima falou sobre Angkor, por exemplo, todos ali pareciam muito familiarizados com duas religiões das quais ele apenas reconhecia o nome – budismo e induísmo. E que dizer dos textos que para ele pareciam impronunciáveis? Mahabharata, Ramyana, Bhagavad Gita ...

Finalmente, a tia Lúcia levantou-se da mesa e anunciou que ia abrir as malas.

Primeiro ela retirou da mala uma bela toalha de seda para a mesa do vovó, uma camisa de seda para o vovô e um saquinho que entregou ao menino.

Juquinha imediatamente abriu o presente. De dentro do pacote caíram sete cangurus de madeira, de tamanhos diferentes, que se encaixavam uns nos outros de diferentes maneiras. Ele gritou de satisfação.

- Obrigada, titia. Obrigada.

A tia ainda retirou da bagagem de mão um pacote de deliciosos bombons para toda a família. A avó deu um ao Juquinha e colocou os outros na bomboneira de cristal sobre a mesa da sala.

Entretida com seus cangurus e com o bombom, Juquinha deixou de prestar atenção à conversa, até que a tia o chamou de novo:

- Veja os postais, querido.

Juquinha olhou assustado para os homens de cara pintada, de língua de fora, e mulheres com saias estranhas; aquilo não estava nos álbuns de fotos da internet. Eram fotos do povo maori.

A tia também mostrou a ele vários livros que trouxera consigo, livros sobre folclore, livros com lendas e histórias que ela prometeu que ia traduzir para ele, pois algumas eram bem interessantes.

E então ela descarregou sua câmera no computador e mostrou a todos pequenos filmes, com as danças que gravara na Nova Zelândia e no Camboja. E foi explicando que aqueles homens eram guerreiros maoris, ou pescadores cambojanos, que aquelas outras mulheres eram colhedoras de arroz, e as mais belas danças eram as exibidas nos casamentos e, antigamente, na corte do rei, pelas melhores bailarinas, chamadas Apsaras.

Eram danças estranhas, e, as músicas, muito diferentes das nossas.

E assim a noite chegou sem que se dessem conta. Mas, enfim, vovó e vovô mandaram Juquinha escovar os dentes e ir deitar.

Juquinha dormia no quarto de hóspedes, mas naquela noite não conseguia fechar os olhos, e não parava de fazer perguntas em cima de perguntas para a pobre tia. Ela estava fascinado com a estátua de quatro braços do deus Vishnu. Com as caretas maoris. E, é claro, com a Austrália.

- Conta mais sobre a Austrália, tia.

- Assim que eu entrei na Austrália, você sabe, o rapaz da imigração devolveu meu passaporte dizendo com um sorriso maroto: Viva seu sonho.

- Por que, tia?

- Porque a Austrália é a terra do sonho.

E a tia explicou:

- O povo aborígene diz que, antes de o mundo ser mundo, os deuses se reuniram em uma pedra mágica, a Uluru, para sonhar o mundo. E sonharam tudo o que existe, todos os bichos, e lugares, e gente, e estão sonhando até hoje, porque o sonho não tem passado nem presente nem futuro, o tempo do sonho é a eternidade. E cada um de nós é parte do sonho dos deuses.

Juquinha arregalou os olhos.

- Mas a tal Uluru não fica na Austrália? Então como é que os deuses puderam ir para lá se a Austrália inda não existia?

- Mistério – sussurrou a tia – como este mundo é um sonho, e nos sonhos, tudo é possível...

- Mas...

- Ah, eu quase que me esqueço, trouxe uma moeda para cada um de vocês. – e a tia procurou em sua carteira. Tirou de lá uma pequena moeda, onde estava desenhado um canguru diferente, pois era um desenho ao modo dos aborígenes. Bonita.

- Essa é uma moeda comemorativa, especial – explicou ela – consegui algumas, e, é claro, trouxe uma para cada um de vocês. E dei outras duas para duas crianças que conheci na viagem, para uma garota graciosa que conheci em Siem Reap e para um menino maori. E foi engraçado porque a menina cambojana disse que queria conhecer um lugar frio e o menino maori disse que queria conhecer uma terra bem quente.

- Se eu pudesse viver o meu sonho, eu ia conhecer estes lugares estranhos em que você esteve, mas com crianças como eu, é claro, porque só com adultos seria muito, muito chato. – o menino segurou a moeda nas mãos com cuidado, e a colocou na mesinha de cabeceira - Posso pegar esta moeda e fazer um desejo, como as pessoas fazem ao jogar moedas nas fontes? Pois eu quero conhecer as outras crinças que ganharam as outras moedas e brincar com elas e conhecer onde elas moram. Você acho que esta é uma moeda mágica, tia? Você acredita em objetos mágicos?

- Mágicos como os de circo? Claro que não, são truques.

- Não, não, mágicos como os objetos das histórias, você sabe, a toalha que o menino estende na mesa quando tem fome e então aparecem suas comidas prediletas, a pedra da gruta de Ali Babá, o anel que o herói leva no dedo para usar em um momento de perigo e chamar um gênio ou animal mágico.

- Ah, isso é diferente, você está falando de objetos de poder. – a tia pensou antes de responder. – Bem, em primeiro lugar você tem de merecer o objeto mágico. Em segundo lugar, só pode usar este objeto em extrema necessidade. Em terceiro lugar, a porta da gruta de Ali Babá está hoje em qualquer loja moderna, é uma questão de técnica.

- Então você quer dizer que a pessoa está falando de uma coisa que ela não conhece? Como os índios que chamaram o português de Caramuru porque não conheciam a pólvora?

- Sim, mas há mais do que isso. Objetos de poder nas historias de fadas são símbolos. Símbolos do que a pessoa merece. O objeto de poder mais interessante que eu conheço - e você poderá entender facilmente o que eu quero dizer - é a pena do Dumbo.

- Dumbo, o elefantinho voador? Bem... – Juquinha refletiu um pouco e disse – A pena não era exatamente um objeto mágico, porque o Dumbo sabia voar, só que não sabia que sabia, porque ele voava dormindo.

- Exato! –exclamou a tia – e todos os nossos heróis que recebem de suas fadas madrinhas objetos mágicos, estão, de certa forma, dormindo. Um objeto mágico apenas faz você perceber o seu próprio poder, algo que você já possui, que já adquiriu por méritos próprios e não percebeu. Neste caso, querido, sim, eu acredito em objetos mágicos.

Juquinha ficou pensando...objetos mágicos, objetos de poder...talentos que uma pessoa tem e não sabe que tem...que intrigante...

- Você disse que os heróis que recebem objetos mágicos estão dormindo, é porque eles fazem parte do tempo dos sonhos?

- Todos nós fazemos parte do tempo do sonho, querido, nós estamos sonhando uma linda vida, que os deuses sonharam para nós primeiro... – e, antes que o confuso garoto pudesse retrucar, ela acrescentou - E agora, meu querido, não tem mais desculpas para ficar acordado.

E a tia finalizou, muito séria:

- Viva o seu sonho.



Capítulo três
Primeiro sonho


bibligrrafia:
http://www.newzealand.com/
books:
Maori Legends – Alistair Campbell
Maori – Aotearoa New Zealand – Don Sinclair



Juquinha estava em um lugar muito úmido. À sua volta, tudo estava ainda muito escuro, havia poucas estrelas no céu e ele sentiu areia em suas mãos. Sentou-se. Percebeu a seu lado duas outras crianças, uma menina e um menino, que pareciam ter a mesma idade que ele.

- Quem são vocês? – ele perguntou.

- Tomika – respondeu o garoto, embrulhado em uma capa de penas.

- Chim – disse a garota, tremula, enrolada em um belo tecido de seda estampado.

Então uma figura alta sussurrou perto deles:

- Vamos, agora. Sigam-me. – Juquinha correu atrás de quem assim falava, um belo moço, de corpo atlético e pernas ágeis, que ajudou as crianças a pularem para dentro da enorme canoa e a sentarem-se bem quietas nos últimos bancos.

- Fiquem aqui, meus irmãos não podem ver vocês,porque vocês vieram do futuro, mas podem ver a mim, por isso vou ficar escondido até chegar a minha hora. – Assim falando, ele escorregou para o lado do mar, agarrando-se ao casco da embarcação.

- Espere um pouco – chamou Juquinha – quem é você?

- Maui.

O céu começava a clarear e ruídos de passos correndo na areia fizeram o garoto silenciar.

Quatro rapazes, fortes e ágeis, saltaram para dentro da canoa e começaram a remar vigorosamente para o mar aberto.

- É ótimo que Maui tenha ficado em casa dormindo, assim podemos ter um pouco de glória – disse um deles.

- Maui é esperto e valente, já o vimos pegar uma baleia pelo rabo e fazê-la girar no ar – comentou outro – mas nunca deixa nenhuma oportunidade para nós mostrarmos nossos próprios méritos.

- Eu não me importaria muito com o fato de ele ser maior e mais forte, se não fizesse toda sorte de brincadeiras idiotas conosco – desabafou outro.

- Está um dia lindo para pescar, irmãos – disse outro – vamos nos concentrar nos ventos e nas ondas do oceano.

Juquinha olhou para trás. Os rapazes remavam tão rápido que já quase não se viam o contorno da praia de onde haviam saído.

No horizonte, uma faixa carmim derramava-se pelo oceano em direção à canoa, e por todos os lados a água agitada ganhava tons prateados. Tudo parecia brilhar mais a cada momento, enquanto nuvens amarelas e douradas espreguiçavam-se pelo céu. O próprio ar parecia brilhar, e a bisa gelada começava a ficar mais agradável, não exatamente quente, porém menos cortante.

A canoa seguia deslizando por sobre as ondas, veloz, ao ritmo cadenciado dos remos. A cada remada, gotículas de água salgada e fria caíam nos rostos dos remadores e das crianças.

- Eu queria conhecer um país frio – sussurrou a garota – esse foi o meu desejo, conhecer um país bem diferente de onde moro, onde é muito, muito quente. E muito pobre, também.

Juquinha perguntou de onde ela viera e ela respondeu que vinha do Camboja.

Juquinha observou os remadores de faces ferozes a mexerem seus corpos na cadência das remadas. Eles haviam prendido seus longos cabelos pretos com fitas coloridas e pintado o rosto todo com linhas pretas. Isso fazia com que eles não parecessem humanos.

De quando em vez, uma marola levantava o barco acima da linha d’água e a canoa caía com grande estrondo no mar, recebendo jatos de água salgada em seu interior.

Afastavam-se cada vez mais longe, e nada de peixes – assim diziam os rapazes, que olhavam para as águas com atenção. Nem baleias nem pesca miúda.

O sol foi-se levantando no horizonte até estar exatamente no meio do céu, a sede fazia a garganta de Juquinha doer, e seu estômago roncou alto.

Tomika tirou um pouco de água do fundo de um reservatório debaixo de um dos bancos da canoa e ofereceu água para Chim e Juquinha. Depois pegou um pouco de peixe salgado que estava a um canto e repartiu com eles.

A água estava fresca e boa, e o peixe tinha cheiro forte. Juquinha jamais comeria aquilo se não estivesse com muita, muita fome.

- Não se preocupem, não seremos descobertos – falou Tomika – Maui disse que não podemos ser vistos por eles.

- Você conhece Maui? Quem é ele? – perguntou Chim.

- É o grande herói do meu povo – explicou Tomika.

Neste momento uma grande agitação começou entre os irmãos.

- Já visitamos todos os locais de pesca que conhecemos e em nenhum tivemos sorte – disse um deles – Vamos voltar.

Os outros resistiam, e insistiam em ir mais além. Tomaram água e comeram o que restara do peixe, e então continuaram mais adiante. A tarde estava a cair quando enfim todos concordaram em voltar.

O sol já não aquecia mais a pele e a brisa amena dera lugar a um vento cortante e seco.

Neste momento Maui apareceu.

- Bem, irmãos, já que não pescaram nada sozinhos, deixem-me tentar.

Os irmãos ficaram muito bravos por Maui ter ficado escondido na canoa.

- Fiquei escondido – disse ele – e não fiz nenhum truque para prejudicar a pescaria. Foi apenas falta de sorte, mas comigo será diferente.

Maui pegou seu anzol de osso encantado e o jogou bem longe. Os irmãos fizeram o mesmo. Quase no mesmo momento em que tocaram a água, as linhas começaram a puxar e cada irmão pescou um belo peixe. Apenas a linha de Maui continuava esticada e tensa.

Tomika estava excitado e batia palmas.

- Puxa, puxa, Maui! – gritava Tomika..

Maui puxou, e uma enorme superfície de terra apareceu no oceano, na ponta de anzol de Maui.

- É Aotearoa – gritava Tomika – Aotearoa!

Maui desvencilhou a enorme ilha de seu anzol, pegou as crianças em seus braços que ficavam cada vez maiores e disse a elas que se sentassem em suas mãos.

Maui estava crescendo, crescendo, e em suas mãos enormes as crianças se acomodaram e viram, lá embaixo, não uma, e sim três ilhas:

- Esta é a ilha que eu pesquei agora, aquela é a nossa canoa e a menorzinha ali é a âncora que esta segurando a canoa.

Tomika explicou aos outros que o nome da ilha norte é Te Ika a Maui que significa o peixe de Maui, a ilha sul é conhecida como a canoa de Maui, ou Waka a Māui e a pequena ilha Stewart, próxima ao fim da ilha sul, é a ancora ou Te Punga a Maui.

- E agora – continuou Maui - vocês vão viajar nas primeiras canoas ancestrais. – Maui piscou para Tomika, que suspirava de emoção, e ficou de novo pequenino, e no meio do oceano colocou as crianças atrás de uma de duas canoas imensas, que se aproximavam das praias.

- Tomika, você sabe o que está acontecendo? – perguntou Juquinha.

- Sim, claro – falou o menino. – Maui é o herói que nasceu homem e ganhou a imortalidade, fazia muitas coisas mágicas, como pescar a ilha norte, como acabamos de ver. Não havia ninguém nestas ilhas até que chegaram aqui as canoas ancestrais.

- Que canoas são estas? – Chim arregalou os olhos.

- Meu povo descende de povos de outras ilhas, ilhas cheias de verde, de frutas boas e peixes a fartar, ali todos viviam uma vida longa e feliz, e, como as ilhas eram pequenas, de vez em quando ficava lotada e os mais jovens então partiam em procura de outras ilhas para construir seus lares. Bem, certa vez, duas canoas com jovens casais saíram pelo oceano e viajaram para tão longe, que chegaram aqui, onde as ilhas são grandes o bastante para que ninguém precise sair delas e assim estamos todos aqui até hoje.

Juquinha olhou para os ocupantes da canoa. Havia bem mais de quarenta pessoas em cada uma delas, entre moças e rapazes, nenhuma criança, nenhum idoso, só gente forte e corajosa, remando persistentemente nas ondas bravias, parecendo cansados, muito cansados. Quanto tempo havia que já estavam remando?

- Olhem – gritou um dos moços – Terra!

Foi como injetar ânimo novo nos remadores. Começaram a cantar e a movimentar-se velozmente, ao aproximarem-se da praia saltaram das canoas, nadaram, mergulharam, empurravam as canoas para terra, falavam, riam, tudo ao mesmo tempo, uma alegria só.

Juquinha e as crianças começaram a correr em volta do grupo, também. Maui apareceu e correu com elas por toda parte, com seus passos mágicos que levaram as crianças ao mesmo tempo a diferentes lugares.

Maui correu com as crianças em volta de lagoas azuis, de praias rochosas, de penhascos e promontórios repletos de focas e leões marinhos, de vulcões ativos, de geisers fumegantes, de baías onde passeavam pequenos pingüins, e por entre enormes pinheiros de pinhas minúsculas, e por entre arbustos estranhos que Juquinha nunca havia visto, por onde passeavam pássaros que não sabiam voar.

- São as moas – explicou Maui – hoje estes pássaros já não existem mais. Foram o alimento preferido dos primeiros maoris.

- Maoris? – Juquinha e Chim olharam para Maui, surpresos.

- Maoris – repetiu Maui – os primeiros homens que chegaram aqui. Seus ancestrais, Tomika.

Maui levou as crianças de volta à praia e tornou a desaparecer.

Os jovens, deitados na areia, cansados da travessia, conversavam animadamente.

Apesar de não entender a língua deles, Juquinha percebeu uma palavra que repetiam a toda hora, olhando para o céu.

À luz do sol poente, as nuvens alongavam-se de novo por toda parte, enquanto o manto azul da noite se erguia na outra ponta do céu.

- Aotearoa.

Tomika começou a pular. Todos os rapazes e moças levantaram-se da areia e começaram a cantar uma canção onde se repetia muitas e muitas vezes a palavra Aotearoa.

- O que é isso? – perguntou Chim baixinho no ouvido de Juquinha.

- Ah, isso eu sei responder – e o garoto sentiu-se orgulhoso. – Aotearoa quer dizer a terra das longas nuvens brancas. É o nome que este povo deu para a Nova Zelândia.





As crianças deitaram-se na areia, sonolentas, e ficaram a observar os primeiros maoris em sua primeira noite na ilha.

Como ninguém podia vê-las, estavam à vontade para conversar e tocar em tudo.

Juquinha estava impressionado com as canoas longas, entalhadas em um único tronco de árvore, resistentes às surpresas do mar – tempestades, baleias, recifes, talvez até icebergs.

Finalmente, cansado, encostou-se aos amigos e todos adormeceram na areia.



Pela manhã, acordaram, e Tomika exclamou:

- Amigos, vamos até a minha aldeia. Ali está minha família.



- Eles não vão estranhar? – perguntou Juquinha, ainda meio tonto.

Ontem estava no passado, hoje estava de volta ao presente?

- Qual é, isto aqui é o paraíso dos turistas de todo o mundo, não sabia? Estamos acostumados com línguas estranhas e trajes esquisitos.

- Kia Ora – disseram alegres os parentes de Tomika, rodeando as crianças.

- Kia Ora – respondeu educadamente Juquinha, supondo que aquele devia ser o cumprimento semelhante ai nosso bom dia, e era mesmo.

Chim bocejou, esfregando o estômago.

- Venha, vamos comer algo. – e Tomika levou os amigos para sua casa, lembrando a eles que teriam de tirar os sapatos antes de entrar.

- Em minha terra também fazemos assim – disse Chim – a poeira da rua deve ficar na rua enquanto nossos lares permanecem limpos.

Um cheiro de vegetais e carne cozida estava no ar, e Juquinha logo percebeu que ia comer uma refeição quente, embora bem diferente da que estava acostumado pela manhã.

- Nós comemos fora de casa – explicou Tomika.

Juquinha pensou que deveria ser muito desagradável comer fora de casa no inverno.



Quando souberam que havia visitantes, os maoris resolveram dançar o powhiri para recepcionar as crianças. As mulheres usavam, na dança, uns objetos redondos semelhantes a bilboquês chamados poia, fazendo malabarismos interessantes com eles.

- E aí, gostou da dança deles? – perguntou Juquinha para Chim.

- É muito alegre e ingênua – respondeu a menina.

- Ingênua?

- Sim, a dança de vocês é muito espontânea e cheia de emoção, eu gostei. Na minha terra as danças são muito refinadas, eu mesma há anos faço aulas de danças porque pretendo dedicar minha vida à dança – e a garota abaixou os olhos, encabulada – Mas, é claro, meu povo tem milhares de anos e nosso império foi um dos maiores do mundo.

- Que império?

- O império Kmher.

- Nunca ouvi falar.

- É porque você é criança, o mundo é grande, e você inda tem muito o que aprender – sorriu a garota. – Mas você vai ver, quando chegar ao meu país. Vou levar você até lá.

Estou gostando deste sonho – pensou Juquinha.



- Eu não pensei que vinha a um país tão selvagem – comentou Chim.

- Aotearoa não é um país selvagem – protestou Tomika – Acontece que os maoris são o mais interessante do país, quero dizer, o resto são cidades civilizadas igual a qualquer outra parte.

- A aldeia global – comentou Juquinha.

- A língua maori é considerada patrimônio cultural e tenho o maior orgulho de fazer parte deste povo e manter suas tradições – disse o menino.

- Ah, eu não quis ofender – disse a menina – É um lindo país e eu vi as paisagens mais lindas de minha vida aqui. Estas pedras verdes, vulcões, todos estes animais marinhos, estas montanhas, é lindo de fazer a gente dançar e cantar, realmente. Mas, como é que os estrangeiros não expulsaram vocês, como eles fizeram em toda parte?

- Ah, porque nós somos maoris, é claro. – Tomika dançou a Haka, a dança de guerra, fazendo caretas horríveis e gestos ameaçadores, para impressionar os amigos. Mesmo sem ser tatuado, ele parecia assustador. - Nós somos bravos, valentes, ferozes, e lutamos pela nossa terra e fomos mais fortes que eles, até que desistiram e assinaram o tratado.

- Que Tratado?

- O Tratado de Waitangi, em 1840. Foi muito bonito. Os maoris pegaram suas armas e fizeram wero, o desafio, e os ingleses vieram com seus uniformes de gala, e todos reconheceram que somos todos um só povo: He Iwi Tahi Tatou. Temos a posse das terras, e a partir de então somos todos neozelandeses, brancos e maoris.

- He Iwi Tahi Tatou – repetiu Juquinha, sonhadoramente. Quem sabe no futuro o planeta inteiro pudesse assinar um tratado em que todos fossem um só povo...



Capítulo quatro
Segundo sonho



Na manhã seguinte, Juquinha acordou com muito calor. Gotas de suor escorriam por sua testa aos primeiros raios matinais. A seu lado, Tomika arregalava os olhos:

- Nossa! Eu queria conhecer uma terra bem diferente da minha, um império de guerreiros que morassem em um lugar bem quentinho, para variar, mas isto aqui... é enorme!

Em frente aos meninos, via-se um espaço imenso onde construções de pedra refletiam-se nas águas de um grande lago. Ao contrário dos lagos da Nova Zelândia, no entanto, este estava rodeado pela selva.

- Esta é minha cidade – falou Chim – Estamos em Siem Reap e o que estão vendo ali à frente é Angkor.

A menina trouxe para eles dois cocos e algumas frutas. Os meninos beberam vagarosamente a água doce, pelo canudinho, e comeram as frutas frescas.

Juquinha observou Chim. A garota tinha um rosto meigo, de feições delicadas, e seu corpo parecia frágil e ágil. Seus enormes olhos negros sorriram para ele.

- Tomika me mostrou um pouco do povo dele, eu vou mostrar um pouco do meu, e aí onde você vai nos levar, Juquinha?

Juquinha ficou pensando. Havia tanta coisa bonita no Brasil...Mas, se ela gostava de dança, ele tinha de levar a garota ao Rio de Janeiro para ver o desfile das escolas de samba! Embora preferisse levá-la para Gramado, no Rio Grande do Sul, seu rincão preferido, para comer chocolates e ver a paisagem bonita da serra da Estrela.

Quando acabaram de comer, Tomika falou:

- Então este era o tal império Khmer do qual você nos falou.

- Aqui a gente vai andar de tuc-tuc – disse a menina – afinal, são cerca de 30 km e o sol aqui é de derreter pedras.

- Foi ali pelos séculos nove e quatorze que os guerreiros do império khmer dominaram esta parte da Ásia – explicou Chim – Eles eram ferozes, também, e valentes. Os reis mais famosos deles foram Suryavarman II , que construiu o templo de Angkor e Jayavarman VII, que foi bom para o povo e construiu escolas e hospitais. Eles vieram da Índia, onde a religião dominante era o hinduísmo, e, por certo tempo, houve alguns reis budistas, então as histórias esculpidas nas pedras vão contar a vocês todo o Mahabharata e vocês vão ver também muitas imagens do Buda Sakyamuni. E há um lugar muito especial aqui que se chama portal dos elefantes, vocês vão gostar de ver este animais enormes e mansos, pela manhã alguns turistas chegam pelo portal e tiram fotos montados nos elefantes. É um bom lugar para a gente começar nosso passeio.

Depois de verem os elefantes, e até montarem em um deles, as crianças entraram no templo principal e Tomika pergunrou para Chim o que barata era aquela.

- O Mahabharata é um livro onde estão as principais histórias da Índia. Tem fatos históricos, costumes, tradições, mitos, tudo sobre os deuses do hinduísmo. As principais histórias do Mahabharata estão esculpidas nas paredes dos templos de Angkor.



Chim mostrou aos meninos a famosa batalha entre Pandavas e Kauravas., hoje comprovada historicamente.

Em outro painel, uma outra batalha famosa, entre o príncipe Rama e o demônio Ravana.



- Tudo bem - disse Tomika - mas a gente não está na Índia. Estas batalhas aconteceram na Índia, não foi? O que tem a ver com o seu país?

- Da Índia partiram muitos povos, entre eles o povo khmer, que veio para cá, para o Camboja – explicou Chim – e trouxeram os mesmos costumes e tradições.



O painel de que Juquinha mais gostou mostrava, na parte de baixo, minúsculos peixinhos, e, na de cima, figuras de mulheres dançando. Eram as apsaras, dançarinas celestes. E Chim contou aos meninos a história do batimento do oceano de leite. Foi mostrando na pedra e contando:



- Aqui, no centro, é o monte Mandara. Enrolada no monte, está a serpente Vasuki, que se ofereceu para servir de corda, enrolada no monte, e, de cada lado, espíritos bons e maus agarram-se na cobra e puxam para fazer o monte bater o oceano. Os espíritos bons são os devas e os maus são os asuras. O monte Mandara está apoiado sobre as costas de uma tartaruga gigante, Kurma, que é uma das formas do deus Vishnu. Kurma, lá embaixo, vai girando o monte e batendo suas patas, e assim, faz com que o leite se transforme em manteiga, e um monte de coisas vai sair deste oceano, inclusive as apsaras.



- Para que eles estão batendo o oceano?

- Isso aconteceu depois de um dilúvio, não havia nada mais, e, para recriar o mundo, o deus Vishnu, que dormia debaixo do oceano, tinha de acordar e pegar o elixir da imortalidade para fortalecer os deuses.

- Um dilúvio? Interessante, e por que os deuses estavam fracos?





- É, vocês sabem, há muitos mundos, e eles acabam e começam de novo, e a cada ciclo, Vishnu acorda e recria o mundo que acabou.

- Os cientistas tem um nome para esta teoria, um tal de Big Bang – falou Juquinha.

Tomika apenas comentou:

- Muitos mundos, é? Que coisa estranha.



- Bem, naquela época, Indra ofendeu um dos sábios que ajudam os deuses a criar o mundo, e este sábio tirou o vigor dos deuses. Então Indra precisava pegar do fundo do oceano o elixir da imortalidade, o Amrita, a bebida sagrada. Por isto ele acordou Vishnu e chamou devas e asuras.



- E eles conseguiram o tal elixir?

- Sim, conseguiram. Enquanto iam batendo o oceano, iam aparecendo coisas, as apsaras, a vaca, o cavalo, o deus da medicina, a deusa da prosperidade Lakshmi, o deus da medicina com a urna que continha o preciosos elixir.

- Ah, mas os demônios devem ter tentado ficar com tudo. – opinou Tomika.

- Sim, tentaram, e aí o deus Vishnu se transformou em uma bela jovem, Mohini, e se ofereceu para distribuir a bebida, e convenceu os asuras a esperarem na fila – claro que ele não pretendia dar nada aos asuras.

- E aí...

- Um dos asuras mais espertos, um tal de Rahu, se disfarçou de deva e conseguiu tomar um pouquinho, mas o sol e a lua, lá do alto, viram tudo e avisaram Vishnu. Vishnu cortou a cabeça dele, e, como Rahu já havia bebido, a cabeça inda existe até hoje, e é ele quem como o sol e a lua de vez em quando provocando os oclipses, mas como ele não tem barriga, a lua e o sol escapam outra vez.

Os meninos riram.

- Que engenhoso!

- Também dizem que um veneno surgiu do oceano, ameaçando a todos, e que o deus Shiva tomou o veneno e ficou com a garganta azul; é o senhor da vida e da morte, é o devorador do tempo, rege o nascimento e a destruição.



Os meninos andaram o dia todo pelos diversos edifícios de Angkor. Viram os macacos da floresta passeando em meio ás pedras, enormes árvores infiltradas em uma das construções, que foi deixada intacta, para que todos pudessem ver a selva retomando seu território, e admiraram as esculturas de leões recuperadas por artistas modernas que trabalham na preservação de Angkor, e admiraram as grandes cabeças de pedra ao por do sol.



O calor era intenso, e Tomika estava se sentindo mole, mesmo depois de beber água de coco de montão.

- A gente vai jantar, e vocês vão me ver dançando – disse a garota.

Voltaram para a cidade de tuc-tuc, no transito mais caótico que Juquinha já vira na vida – motos, biciletas, carros, gente a pé, todo mundo se cruza ao mesmo tempo, e, como todos andam devagar, ninguém se atropela.

Chim colocou os amigos sentados em uma mesa na primeira fila do rnome do restaurante.

Falou a eles para comerem antes de as danças começarem, era só pegar o prato e pegar o que quisessem nas mesas do fundo. Ela ia encontrar seu grupo de dança.

Os garotos, meio tímidos, se aproximaram. Havia de tudo: saladas, frutos do mar, carne, frango, legumes, doces estranhos e frutas esquisitas.

Uma das frutas, conhecida como fruta dragão, tinha polpa branca com sementes pretas; um dos doces era feito de folhas de chá.

Tomika escolheu peixe e frutas; já Juquinha, curioso, pegou várias comidas diferentes e gostou de tudo. Comeu só um pouquinho de cada coisa, para não ficar doente, pois não era guloso.

Quando as danças começaram, Juquinha ficou encantado com a amiga. Que graciosa!

- Ela é bonita – comentou Tomika – a dança deles é meio sem vida, mas elegante. É como Chim disse, refinada, sem espontaneidade.

Juquinha abriu a boca, espantado. Sem vida? Então entendeu que Tomika estava com ciúme.

Os meninos imaginaram que estavam no palácio do rei Jayavarman VII,, nos tempos áureos de Angkor, em um banquete cheio de deliciosas iguarias, admirando as apsaras.

E como eles estavam mesmo comendo deliciosas iguarias e admirando apsaras, e haviam visto o trabalho de restauração de alguns templos, foi fácil imaginar o resto.



Capítulo cinco
O terceiro sonho


O gostoso de dormir em sítio é dormir a sinfonia dos grilos e acordar com a passarada o ano todo e com as cigarras, na primavera e no verão.

A gente acorda descansada, mesmo porque consegue dormir no escuro, e no escuro, dorme-se um sono profundo.

Lúcia, depois de 23 horas de viagem a favor do sol, com as refeições ao contrário do relógio biológico, abriu os olhos, sem certeza de ainda estar acordada.

Havia tido um sonho tumultuado, onde o sobrinho Juquinha a arrastara ao Rio de Janeiro com Tomika e Chim, e todos foram ao sambódromo assistir ao desfile das escolas de samba campeãs, em plena terça-feira gorda...

Lúcia encontrou a família no café da manhã, e, para seu espanto, Juquinha contou um estranho e longo sonho, na última parte do qual, ela, Lúcia, havia acompanhado as crianças ao Rio de Janeiro!

Juquinha apertou a moeda australiana entre os dedos:

- Tia, esta moeda é mágica.

- Mágica é a sua imaginação – disse o avô, mas Lúcia permaneceu quieta, lembrando-se do incrível sonho.

Voltaram todos para a sala, onde os avós continuaram a folhear os livros e postais, a observar os filmes e fotos, e a conversar sobre a viagem da filha. Juquinha ouvia tudo com atenção, entretido com seus cangurus de madeira.

- Ontem você se estendeu sobre os maoris e sobre Angkor. Hoje você vai nos contar mais sobre a Austrália. – pediu a avó. – Você não visitou o museu de Antropologia de Sydney, como eu recomendei?

- Sim – disse Lúcia – Trouxe uma porção de fotos de material que eu nunca colocaria na página pessoal para mostrar a vocês, e tenho uma malinha de coisas aborígenes, ainda fechada, lá no meu quarto, com coisinhas muito especiais para certos professores de história comparada que eu conheço...

Neste instante, o telefone tocou.

Juquinha ficou boquiaberto a ver a facilidade com que a tia se comunicava em inglês. Ah, ele também tinha de aprender inglês algum dia. E possivelmente outras línguas, também. Ele passeou os olhos pelos porta-retratos espalhados pela sala. Em um deles a tia estava entre alguns índios. Depois de sua formatura, quando Juquinha ainda usava fraldas, Lúcia passara um ano inteirinho morando em Roraima, em uma reserva indígena. Com certeza ela aprendera um bocadinho da língua dos índios.

Quando Lúcia desligou o telefone, havia em seus olhos um brilho encantador.

- Pai, mãe, sabem quem acaba de ligar? O Dr. Howard, diretor do museu de antropologia de Sydney.

- É mesmo? O que ele disse?

- Eu fiquei muitos dias com ele, em Sydney. E ele me comunicou que está organizando uma viagem ao Brasil, quer vir ao parque nacional do Xingu e à reserva dos ianomâmis em Roraima. Ele me convidou para fazer parte da equipe e servir de guia e intérprete para eles. Claro que eu disse sim!

Na próxima meia hora não se falou de outra coisa. A tia estava animadíssima com a oportunidade. E os avós também.

Quando a conversa dos adultos fez uma pausa, Juquinha se arriscou a perguntar:

- Tia, este tal diretor que vem para o Brasil é ... bonito? ... e solteiro, também?

- É, sim. - A tia respondeu sorrindo, com os olhos perdidos em suas lembranças.

Juquinha levantou-se, deu um forte abraço na tia, sussurrando em seus ouvidos:

- Viva seu sonho.