sexta-feira, abril 29, 2005

CECÍLIA MEIRELES


CECÍLIA MEIRELES

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por Sonia Rodrigues

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Cecília Meireles nasceu e morreu na cidade do Rio de Janeiro.
Nasceu em 7 de novembro de 1901, filha de Carlos Alberto de Carvalho Meireles e de Matilde Benevides. Seu pai era funcionário do Banco do Brasil e sua mãe, professora municipal. Aos três anos perdeu o pai e passou a ser criada pela avó, Dona Jacinta Garcia Benevides.
A este respeito, refere-se a poetisa: “Essa e outras mortes ocorridas na família... deram-me desde pequenina, uma tal intimidade com a morte, que docemento aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno”... “a noção de transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo de minha personalidade”.
Cecília estudou na Escola Técnica Estácio de Sá, onde recebeu, aos nove anos, o diploma primário das mãos do então diretor Olavo Bilac. Formou-se professora pelo Instituto de Educação, tendo estudado, paralelamente, Inglês e Música
Em 1919 edita seu primeiro livro, Espectros, escrito aos 16 anos.
De 1919 a 1923 participou do grupo de escritores católicos, a chamada ‘corrente espiritualista’, que expunha suas idéias em três revistas: Árvore Nova, Festa e Terra do Sol.
Casou-se em 1922 com o artista plástico português Fernando Correia Dias, com quem teve três filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda.
Em 1923 publica Nunca Mais e Poema dos Poemas , este último ilustrado pelo marido.
Em 1925 escreve Balada para El-Rei, e em 1027, seu livro Criança, meu amor é indicado oficialmente como livro de leitura nas escolas.
De 1930 a 1934 dirigiu a página dedicada à educação do Diário de Notícias do Rio de Janeiro. Em 1934 fundou a primeira Biblioteca Infantil Brasileira no Pavilhão Mourisco, no Rio de Janeiro. Este centro foi fechado após breve período de funcionamento por conter a obra As Aventuras de Tom Sawer, considerada ‘obra perigosa’. Sinal dos tempos.
Em 1935 seu marido suicida-se.
Em 1938 recebeu o prêmio da Academia Brasileira de Letras por seu livro Viagens, livro que lhe valeu a consagração como escritora. Cecília Meireles assim descreve sua meta de escritora:

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“Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica de salvação _ mas por uma contemplação poética afetuosa e participante”.
Casou-se em 1940 com Heitor Grilo. Neste mesmo ano, a convite do governo norte-americano foi para a Universidade do Texas onde lecionou Literatura e Cultura Brasileira.
Inicia-se um período de intensa produção literária: Vaga Música (1942); Mar Absoluto (1945); Retrato Natural (1949)
Em 1951 secretaria o Primeiro Congresso Nacional do Folclore.
Em viagens ao exterior, apaixona-se pelas coisas do Oriente. Foi à Índia a convite do Primeiro Ministro Neru, para participar de um simpósio sobre a obra de Gandhi. Escreve em 1962 Poemas Escritos na Índia. A Universidade de Nova Delhi concedeu-lhe o título de doutor honoris causis.
O Chile a homenageou concedendo-lhe o grau da Ordem do Mérito.
Outras obras da autora são: Giroflê, Giroflá, Ou Isto ou Aquilo, Olhinhos de Gato, Escolha o seu Sonho, Vozes da Cidade, O Argonauta, 12 noturnos da Holanda, Metal Rosicler, Solombra, Romanciero da Inconfidência.
Em 1958 o reconhecimento editorial de seu valor artístico ocorre por ocasião da publicação de sua Obra Poética.
Em Cecília Meireles o excesso de técnica não prejudica a mensagem poética; ela está empenhada ematingir a perfeição valendo-se de todos os recursos, tradicionais ou modernos. Em Romanceiro da Inconfidência, por exemplo, Cecília faz uma reconstituição bem pessoal e dramática do desenrolar dos fatos da malograda Conspiração Mineira. Nesta obra a palavra romance ganha o sentido de épico pírico. Citemos um trecho:

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“Liberdade ainda que tarde, ouve-se em redor da mesa/

E a bandeira já está viva/

e sobe, na noite imensa./

E os seus tristes inventores/

já são réus_ pois se atreveram/

a falar em Liberdade/ (que ninguém sabe o que seja).
Liberdade_ esta palavra/

que o sonho humano alimenta:/

que não há ninguém que explique,/

e ninguém que não entenda!/

E a vizinhança não dorme:/

murmura, imagina, inventa/

Não fica bandeira escrita/

mas fica escrita a sentença.”

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Cecília deixou inacabado um poema épico lírico em comemoração do 4° Centenário do Rio de Janeiro, falecendo em 9 de novembro 1964. Para Cecília, criar foi a razão de viver, como ela mesma testemunha em versos como este de “Aceitação”:

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“não tenho inveja às cigarras; também vou morrer de cantar”.

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Bibliografia:
Antologia da Literatura Brasileira – MEC
GOLDSTEIN, Norma Seltzer & BARBOSA, Rita de Cássia. Literatura Comentada. Abril Educação Editora.
MENEZES, Raimundo. Dicionário Literário Brasileiro. Ed. Saraiva, 1969.
TUFANO, Douglas. Estudos de Literatura. Ed. Moderna Brasileira, 1974.

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LIVRO ON LINE: . . . DIAS DE OUTONO . . .

parte 6 - @ da autora

neste diário interior, onde as datas não importam, a vida que está oculta sob a pele, não vivida, mas pensada...
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1998

BHC _ SIM!
Assim que a percebi, parei e retrocedi, não fosse a barata voar em minha direção. Às sete da manhã, há de se convir, é ousadia demais!
Nos corredores do ambulatório, ela bailava em zigue-zague. Emitindo reflexos castanhos-dourados à luz que se infiltrava pelo corredor. Visão até poética, fosse outra a bailarina. Essa apenas denunciava a nossa decadência. Convenhamos: baratas são arredias, vivem escondidas; quando surpreendidas parecem ter mais medo dos humanos que o inverso. Para cada barata dançarina, adivinho todo um corpo de baile oculto nos consultórios.
Há anos trabalhar no Ministério da Saúde significa fazer jus ao adicional de insalubridade. No verão passado, convivi bem com a explosão demográfica das cigarras, que estavam por toda parte – nas paredes, na maca, na balança, até nas gavetas. Eu as recolhia em caixas, cuidadosamente, e as soltava no jardim. Elas agradeciam encantando-me com sua orquestra de violinos.
E no verão anterior houve a invasão dos mosquitos. Fiquei “ dengosa”, apesar de acampar no trabalho besuntada de repelente.
Estoicamente, vou levando...mas...baratas? Começo a desconfiar que se trata de um plano maquiavélico de FHC contra nós, os federais, pois há seis anos ele tenta acabar conosco, sem o conseguir.
Não adianta, FHC. Resistirei!



Voltando de viagem de férias, registro aqui as confusões provocadas por:

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SIMPLES PALAVRAS

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-São sessenta dólares e dez...
Eu entreguei ao motorista sessenta dólares e uma moeda de dez centavos.
Não entendi porque o homem ficou nervoso e desandou a falar muito rápido e muito bravo. Repetia continuamente a palavra dez.
-Pois então! Eu lhe dei os dez.
Meu tio apareceu, deu dez dólares ao motorista e resolveu a questão.
A meu lado, minha irmã ria até as lágrimas. Eu não entendia:
-Pois não eram dez centavos? Ten cents?
-Eram dez por cento.
-Mas...
Meu tio, que só falava inglês, mostrou-nos a casa e disse que teríamos tudo o que precisássemos, sem preocupações e....
Eu me sentia tão orgulhosa de meu inglês! Entendi a palavra tip. Na lição nove de meu livro, havia uma lista de tips – dicas de viagens que um amigo dava a outro: tenha sempre à mão um mapa e um dicionário de bolso, coisas assim.
Respondi a meu tio que certamente eu contava com seu auxílio para me dar todas as dicas necessárias. Minha irmã desandou a rir novamente e meu tio arregalou os olhos.
-Você acabou de dizer ao tio que espera que ele pague todas as suas gorjetas – e minha irmã tranqüilizou o tio, em seu inglês impecável.
-Mas... tip não é dica?
-Oh, poupe-me! E o contexto?
-Mas que contexto?
Assim passaram-se dez dias. Eu dizia, por exemplo:
-Nós iremos ao lago Louise depois do feriado se não chover.
-Bem, como o guia falou em inglês, existe sempre a possibilidade de ele ter dito alguma coisa completamente diferente – e minha irmã, sempre bem humorada, completava – Nós iremos ao lago Heloísa antes do feriado mesmo que continue chovendo, por exemplo.
Que dias terríveis! Eu entendia todas as palavras-chave: lago, almoço, chuva – e perdia todos os elementos de ligação: antes, depois, mesmo que, somente se etc.
-Pedi à tia ‘roupas de cama’, por medo de errar na pronúncia da palavra lençol e acabar falando um palavrão.
-Shit, explicou minha irmã, com sua elegante entonação.
Mas na excursão para as Montanhas Rochosas as coisas mudaram. Havia canadenses de Quebec e suíços que só falavam francês e foi minha vez de servir de intérprete para minha irmã. E, como ela estava em companhia do namorado, eu me sentei ao lado de uma irlandesa, muito doce e atenciosa, que viajava sozinha. Ela me fazia perguntas e mais perguntas sobre o Brasil e por sua vez contava-me sobre a Irlanda.
Eu me sentia cada vez mais segura de meu inglês e orgulhosa de meu progresso. Minha irmã, lá do seu canto, lançava-me olhares de aprovação e incentivo.
Todas as noites, no quarto, eu resumia para minha irmã as longas conversas que tinha com a irlandesa. Eu estava realmente muito satisfeita com a facilidade com que me comunicava com a nova amiga.
Então houve aquele almoço, em que perguntei para minha companheira se ela nos acompanharia na gôndola. Falei devagar, mas firme, pronunciando cada sílaba dom clareza:
-Do you go to the top of the mountain by gondola after lunch?
Seus encantadores olhos azuis me sorriram com simpatia:
-Oh, yes! My tomato soup is delicious! and yours?
(Oh. Sim, minha sopa de tomate está deliciosa! E as sua?)



Julho passou, com seus dias claros e seu céu límpido fazendo a alegria das crianças e das donas de casa. Estas porque o pesadelo da roupa suja que não tem como ser lavada, pois recusa-se a secar quando a cidade se transforma numa nuvem úmida, e tudo nos armários fica cheirando a ‘cachorro molhado’, não aconteceu. E aquelas brincaram até fartar empinando pipas, correndo pela areia da praia e até tomando sorvetes - que estava quente e os pais não tinham porquê proibir.
Julho passou perfeito para férias, ensolarado, quente, lindo.
Inverno sem frio, no entanto, não tem graça nenhuma. Fiquei, frustrada, a esperar pela minha estação do ano preferida.
Inverno, afinal, tem seu jeito próprio, seus aromas, seus sabores: o caldo verde, o fumegante cozido português, o chocolate quente com marshmallow, o vinho quente, o fondue...
Pinhões tem gosto especial quando queimamos nossos dedos gelados no ingrato trabalho de descascá-los; as mãos ficam vermelhas e o estômago, aquecido.
Até mesmo as prosaicas pipocas são mais saborosas nas noites frias em que nos enrolamos em cobertores em volta de uma mesa, como escoteiros acantonados, para um joguinho de cartas.
Inverno é poder vestir-se com elegância; desfilar de blazers, casacões, túnicas e sofisticadas botas.
Inverno mesmo é quando dois cobertores não são suficientes e o companheiro pula quando lhe encostamos nossos pés - e a gente dorme soterrada entre montanhas de edredons, meias, gorros e cachecóis.
Inverno mesmo é quando a gente perde a hora porque a manhã é tão escura, o soninho tão bom e a chuva grossa nos embala como uma canção de ninar.
Inverno perfeito é quando a gente, semicongelada, espera um dia inteiro pelo namorado carinhoso que nos envolve em um abraço daqueles tão aconchegantes que nosso coração se aquece, o mundo torna-se agradável e a felicidade, possível.



Sonho: uma casa ruim, totalmente desarrumada; sigo minha filha até umquarto atulhado de fiapos de ráfia, caixas e coisas; lá encontro meu piano, com teclas descascadas e começo a tocar; ele se transforma em um tear com um padrão de mosaico preto e branco, que manuseio espantada. Tocam a campainha; um bando de palhaços diz que alugou a casa, que vão mudar-se e que eu devo sair. Eu afirmo meus direitos de locatária, eles acampam no corredor. Fico assustada, agora não poderei sair de casa para que eles não invadam tudo em minha ausência’.
Acho que minha vida voltou a ficar uma bagunça – desorganização emocinal e mental. Palhaços são fantasias, ilusões, loucura. Devo impedir que fantasias loucas tomem casa de minha casa mental.


Se ‘na casa de meu Pai há muitas moradas, deve haver um lugar PARA MIM!!!’
Meus pés ciganos, inquietos, procuram novos caminhos. Morei em vinte lugares diferentes sem nunca sentir-me ‘em casa’. Aqui há sol demais, lá venta em demasia, acolá chove de embolorar a alma, ou há barulho demais ou há privacidade de menos. Meus móveis nunca estão bem: falta espaço, não encontro posição para dormir, experimento todas as combinações possíveis de decoração, troco tudo de lugar e é o mesmo desconforto, nunca estou bem em lugar algum!
Ah, que saudade da biblioteca de minha infância, com a cadeira de balanço de papai! Eu me aninhava nela em sua ausência e viajava em livros de aventuras. Que saudades da rede na varanda em frente à frondosa acácia que atapetava o chão com folhinhas miúdas e pétalas douradas! Meus pesadelos são povoados de casas desarrumadas, em ruínas, entulhadas de objetos e uma profusão de cacarecos estranhos, e eu atravesso estas casas por portas escancaradas a procurar, procurar sei lá o quê, ano após ano.
Em certo sonho, eu passeava a cavalo, apreciando uma mansão linda, ampla, clara e agradável, e exclamava: Ah, existem casas de pessoas felizes!
Em outro sonho encontrei minha própria casa toda bem arrumada, recém-pintada e bem mobiliada. Operários se retiravam a dizer: ‘a casa está pronta, é só entrar e morar’
Não tive coragem de encara aquela casa silenciosa e afastei-me. Noite após noite, ao dormir, prossigo em minha buscas solitárias pelas ruas e pelas multidões, olhando atentamente cada rosto, quase sem esperança. Meus pés ciganos, inquietos, gostariam de enraizar-se, desabrochar e florir, mas para isso seria preciso que meu coração encontrasse um lar.

Esta é outra das historinhas acontecidas em meu trabalho.
Como se sabe, fila é ótimo local para sociólogo estudar povo – pobre povo brasileiro, como poderia ser diferente, se lhe falta o básico: a casa, o emprego, a escola.
Na fila do INAMPS, por exemplo, há quem procure o especialista em figos, surdos em busca do Dr. Rino e o homem que quer porque quer marcar consulta com o ginecologista por estar com ‘doença de mulher’. Também há os que não desejam consulta nenhuma. Absolutamente! Querem tão somente uma receita ou um pedido de exames. E quando a balconista tenta explicar que só o médico pode fazer estes pedidos, das duas uma: ou recomeça a ladainha ou põe-se a reclamar do funcionário público vagabundo que trata mal o público.
Um dia desses um fiscal do INAMPS que, vistoriando o posto, percorria os vários setores, na louvável intenção de compreender in locu todos os entretantos, chegou-se ao balcão de marcação de consultas e cortou o primeiro da fila, dirigindo-se diretamente ao funcionário atrás do balcão:
- Com licença, eu sou fiscal do INAMPS e preciso de umas informações.
- Pois não. Aguarde na fila.
- Eu sou um fiscal do INAMPS.
- Está certo, mas aguarde na fila.
- Você não entendeu? Eu sou um fiscal!
- Próximo, por favor. Meu senhor, mesmo sendo um fiscal, o senhor tem de aguardar sua vez na fila.
- Eu não vim marcar consulta.
Furioso, o fiscal escreveu um relatório a quem de direito, solicitando a imediata suspensão do funcionário, que, para surpresa do fiscal, explica-se administrativamente, através de uma carta, com um trecho mais ou menos assim:
‘todo dia agendo consultas para várias especialidades, inclusive psiquiatria. Em minha rotina diária atendo todo tipo de gente importante: o presidente do Brasil, o prefeito, Jesus Cristo, artistas e cantores famosos, e, recentemente, dirigiu-se a mim um fiscal do INAMPS’.
Mas, afinal, porque o sujeito não apresentou suas credenciais? Simples, não?


Fechei-me para balanço.
Uma pessoa nunca deve esquecer-se de lembrar-se das mágoas passadas. É só a gente ficar feliz, abrir a guarda e – touché!
Um artigo meu é publicado em uma revista de saúde de distribuição nacional e eu vou, idiotamente feliz, repartir a alegria com a minha mãe, como uma filha razoavelmente normal.
Ela pega a revista, lê e então comenta:
Acho que tem um errinho aqui, nesta linha, escreveram duas vezes a palavra para.
Eu pego a revista de volta, guardo. Ela ajeita os vasos de flores na janela.
Eu posso perdoar-lhe esta pequena desatenção porque a escolha de ser indelicada é dela. Mas devo lembrar, para nunca mais mostrar-lhe coisa nenhuma de minhas pequenas alegrias, nunca mais contar-lhe sobre meus pequenos triunfos.
Quando eu era pequena, vinha para casa com o boletim cheio de dez e ficava com os olhos cheios de lágrimas quando o elogio tão desejado não vinha. Papai dizia a ela: não vai dar os parabéns para sua filha inteligente? E ela dava de ombros: Por que? Ela não fez mais que a obrigação.
Eu devo ter sido uma filha indesejada. Nasci em uma hora ruim. Ou chorei por madrugadas inteiras por semanas a fio até enlouquecer minha mãe. Não sei ou não lembro.
Se eu ganhasse o ouro olímpico, minha mãe diria que em algum lugar do planeta alguém com um recorde melhor que o meu deixou de concorrer, só para transformar minha medalha em um prêmio sem valor.
Para ela nada está suficientemente bom. Para mim, há muito está bastante ruim.





Lá estávamos, os primos em segundo e terceiro graus, os que se reúnem esporadicamente nos casamentos e batizados da vida, após anos de ausência, com o mesmo nostálgico sorriso de ‘lembra-se de como brincávamos juntos na casa do avô?’ e com o mesmo suspiro fatigado de ‘ah! esta vida corrida que a gente leva!’
Cada festa em família reacende o desejo de compartilhar, pois, afinal, esta é a finalidade da família; durante alguns dias pensamos em promover uma churrascada ou um passeio, mas logo o cotidiano empurra rotina abaixo nossas boas resoluções.
Aí passam-se dois ou três anos até que alguém se case ou batize um filho e é aquela alegria do reencontro, aquela sucessão de calorosos abraços e as trocas de confidências, piadas e receitas.
A última reunião, contudo, foi bem diferente.
Os abraços até que forma mais calorosos, os sorrisos mais amigos, as conversas mais prolongadas, mas havia aquele incômodo constrangimento no ar.
É que a reunião familiar, inesperada, urgente, era um velório. E o primo que falecera nem era o mais velho de sua geração. Os sussurros, aqui e ali, estremeciam os ouvintes:
- Eu o carreguei no colo.
- Brincamos juntos.
- Eu me lembro bem de quando ele nasceu.
- Tão moço... tão bonito...
Agora, à medida que o tempo vai passando, dia um, dia outro, dá o seu recado: hoje um telefonema, amanhã uma rápida visita, e o primeiro que aniversariou levou um susto: a casa cheia de parentes.
Tenho certeza de que de agora em diante será assim: aniversários concorridos no decorrer do ano, por duas razões. A primeira é que nos demos conta de que a morte não escolhe idade. A segunda é como diz o avô:
- “Não quero saber de flores sobre a minha tumba. Quem quiser demonstrar o seu amor por mim, trate de fazê-lo enquanto eu estou vivo.”


quinta-feira, abril 21, 2005

novidades da semana




HAICAI DE MESTRE

caramujo,
sobe sem pressa
o monte Fuji


Issa

O haicai é a menor forma poética do mundo, de origem japonesa. Não tem rima e sempre nos remete a um tema da natureza, neste caso, o caramujo.
Sites de literatura que recomendo a você:

www.ocaixote.com.b
www.blocosonline.com.br
http://kplus.cosmo.com.br/principal.asp

Boa leitura!!
DICA DE SUCESSO

“Uma das condições mais necessárias para fazer coisas dignas de louros consiste em não ter medo de censuras”
A. Graf
LIVRO ON LINE: DIAS DE OUTONO
parte 5
@ da autora
neste diário interior, onde as datas não importam, a vida que está oculta sob a pele, não vivida, mas pensada...
1996



A senhora pobre elogiou o Pantaleão dos Andradas. E eu admirei a delicadeza de sentimentos de minhas acompanhantes, três elegantes senhoras de elite, que educadamente responderam a seus comentários sem corrigi-la.
Nosso povo iletrado é assim mesmo: sofre de dor no figo e de dilatação; quando sabem expressar melhor suas mazelas estão aperreados e avexados, que é ‘desse jeito aí como a senhora está vendo’, e o que a gente vê é mesmo muita miséria com o seu corolário interminável de desgraças.
A minha admiração durou pouco, pois a pobre afastou-se e as ricas continuaram a pantalear. Arrisquei uma frase com Panteão e elas cortaram-me a palavra de imediato:
- Pantaleão, querida. Panteão é coisa de grego.
Não me contive e comuniquei àquelas emproadas que o templo grego situado em Atenas e construído em homenagem à deusa da sabedoria chama-se Partenon.
Panteão é coisa dos romanos supersticiosos que, com medo de ofenderem por esquecimento algum dos inumeráveis deuses cultuados em seu vasto império, construíram por precaução um templo dedicado ao mesmo tempo a todos os deuses, o Panteão.
E os Andradas por um acaso são deuses para terem lá o seu Panteão?
O caso é que os loucos imperadores romanos gostavam de ser cultuados em vida e adorados como deuses pelo povo, e após a sua morte, eram enterrados com pompas divinas. Daí o termo Panteão ter adquirido, por extensão, o significado de edifício onde se enterram os restos mortais das figuras ilustres da História de um povo.
Minha sorte foi uma das matronas ter na bolsa um Aurélio, que confirmou as minhas palavras.
E quanto a Pantaleão? O que é?
É nome próprio, como José, Rosa, João e tantos outros mais meio que esquecidos, pois a moda agora é ter nome de gente importante; é por isso que os brasileirinhos de hoje chamam-se Romário, Aírton, Upiudi ou Maiquijaquiçom.





Lendo sobre a guerra da Bósnia-Yerzegovnia, ouso propor uma solução para a Iugoslávia:
Ah! Esses iugoslavos! Deveriam vir ao Brasil.
Um sérvio e um albanês começariam uma discussão e seriam imediatamente rodeados pela turma do deixa disso.
Nossos iugoslavos ficariam espantados em ver, juntos, um ariano, um semita, um nórdico, um árabe, um negro e um oriental. Mais espantados ainda ficariam ao ver o ariano bater amigavelmente no ombro do negro e contar uma piada, ‘aquela do judeu e do general nazista no campo de concentração’.
Entre muitas gargalhadas, o árabe retrucaria com ‘aquela do cristão cujo avião caiu no deserto e encontrou um muçulmano’. E o nórdico, a rir, continuar com ‘aquela do japonês que visitou a Bahia e entrou em um terreiro de candomblé’
A esta altura, alguém sugeriria aos novos amigos iugoslavos um ‘loira gelada’ e um brinde à Paz. E já em clima de confraternização, vocês conhecem ‘aquela do albanês e do sérvio que eram vizinhos e aí ...’
Aí os nossos iugoslavos seriam forçados a rir-se da imbecilidade humana e concordariam em deixar pra lá as suas diferenças, já que, vivendo todos no mesmo planeta, somos, todos, companheiros de viagem.



Mais anotações para futuras palestras: inspiração e criação ou A Arte como Terapia.
Arte não é comércio, é como respirar, quase um ato fisiológico.ninguém faz arte porque quer, faz arte porque precisa. É comunicar-se ou enlouquecer.
Somos influenciados pelo estilo de nossos autores prediletos, em meu caso Monteiro Lobato.
Hoje em dia Edgar Alan Poe e Fernando Sabino, cuja técnica eu aprecio especialmente.
Eu percebo que emoções fortes transformam-se em devaneios, imagens coloridas e vivas, que ficam querendo sair, agitadas em meu cérebro. Esta inquietação mental começa a tomar um significado, dá origem a uma gestação mental que só se acalma quando a idéia vem à luz: o parto mental. Este é o processo de criação, para mim, em qualquer arte:
Emoção – perturbação psíquica – idéias desorganizadas – ideais organizadas – muito trabalho técnico – criação.
Eu começo a escrever se m censuras, deixando as idéias fluírem do jeito que saem, espontaneamente, para o papel, por mais sem sentido que pareçam.
A arte é uma forma poderosa de catarse em todas as suas manifestações: música, pintura, literatura etc


Os sonhos são interessantes elaborações de conflitos internos que aparecem com histórias simbólicas prontas de grande impacto emocional.
Certa vez li um de meus pesadelos a uma grupo de amigos escritores e cada um deu para a história uma interpretação completamente diferente. Eu mesma, tendo sonhado aos doze anos, só encontrei a chave simbólica aos 35. ele referia-se à passagem da vida de menina para a de mulher, ‘não há volta’, e a chave para decifrar este símbolo são as letras escritas com sangue, a menarca.
O símbolo tem esta plasticidade, esta particularidade de prestar-se a várias interpretações em seus vários níveis de complexidade e de acordo com o estado de cada um em determinado momento.
Em resumo, a criação é uma forma elaborada de transformar o sofrimento em arte, a exposição da realidade interna do artista.



A Laudelina, quando lhe pedem um poema, não se faz de rogada:
- Para quando? Qual o assunto? É para comemorar alguma data especial?
Pois não é que aquela mercenária fazia versos por encomenda? Eu me indignava. Literatura não é culinária!
Cada artista, contudo, cria lá a seu jeito e gosto, e poetas são criaturas estranhas de hábitos bizarros, apesar de irem à praia e ao supermercado como toda a gente. Bem... quase como toda gente.
Aquele cidadão que suspira extasiado ante as frutas empilhadas, que fala de ‘figos solenes’, ‘sabor de avó’ e em ‘amoras comidas com sol’, já se sabe – é um poeta.
Que dizer da amiga que se inspira quando se molha? Larga a louça por lavar, sai do chuveiro pingando pela casa e esbarra conosco na rua a correr debaixo de tempestade, e, quando, solícitos, lhe estendemos o guarda-chuva, ela nos surpreende:
- Caneta e papel, urgente!
Eu pertenço `a família dos que são acordados à noite pela idéia:
- Psiu, estou aqui!
Estendo a mão, acendo o abajur e anoto rápida as frases boêmias no bloco que tenho sempre à mão, preparada para estas investidas noturnas.
Há quem se inspire ao ouvir o som do mar, talvez por isso Santos seja berço de tantos poetas.
Bom, leitor, de hoje em diante, quando você vir uma distinta senhora a escrever na areia, ou alguém o abordar à mesa do bar com o pedido insólito de ‘um guardanapo, rápido, por favor’ ou, na fila do banco, alguém a escrever furiosamente na capa do talão de cheques, sorria – você encontrou um poeta.


Tive cinco filhos gêmeos e troco todos eles por um cesto com cinco gatos.
Um sonho sobre projetos e oportunidades. Os gatos têm sete vidas, portanto são sete novas possibilidades, maiores chances de sucesso. Filhos são projetos.


Escrevo sobre um garoto radioativo e sua irmã invisível, no estilo de O Mundo de Bob.
Eu, hien? Que sonho mais estranho...


1997




É de manhã, quando passeio na praia, que tropeço em haicais. O mar, o céu, a areia, jardins, insetos – uma multidão de kigos no espaço que restou de natureza na ilha concretada. Aí sou feliz. Ouço o mar, tão caro a meu coração, cantiga de ninar para quem nasceu caiçara. Ouço os pássaros, as cigarras, as borboletas... sim, as borboletas cantam, o vento dança e nuvens desenham o céu.
É de manhã que me abasteço de poesia para fortalecer-me. Depois finjo-me guerreira, quando em meu coração o desejo é de partilha. E como uma tigresa convivo pacificamente com borboletas e flores, apoiando-me nos forte troncos, atenta ao ciclo das estações.
Aguardo a manhã seguinte.




Minha mãe brigou a noite toda comigo, dizendo severamente: Egoísta! - e eu quieta, concordando.
Um sonho de culpa e auto-recriminação. Qual a utilidade deste sonho? De outra parte, está relacionado ao passado, de que adianta resolver o passado?


Viagens de férias. Sorvetes. Tudo o que é bom parece acontecer no verão. É uma exuberância de frutas, um não acabar mais de passeios ao ar livre, e quando se mora à beira mar, então, há um vasto leque de diversões à escolha. Caminhadas na praia, mergulho, natação, pescaria, passeios de barco e toda sorte de esportes aquáticos.
Claro, nem sempre o calor é agradável. Para quem trabalha exposto ao tempo, sem ventilador, sem ar condicionado, fazendo esforço físico, não é nada divertido.
Há dias em que a temperatura sobe tanto que, visto de longe, o asfalto parece água, e a paisagem junto ao solo estremece, distorcida pelas ondas de calor. Dias em que, já pela manhã, tudo parece queimar a nossa pele _ o sofá, os lençóis, e até das torneiras jorra, à temperatura ambiente, um líquido escaldante e nada convidativo. Dias em que nada refresca - nem banho, nem piscina, e mesmo os aparelhos de ar condicionado não conseguem amenizar o mal estar. Dias em que a única atitude sábia é encolher-se à sombra, como um bichinho, imóvel, esperando, pois está quente demais até para se conseguir dormir. (deveria haver um verbo para a suspensão temporária das funções vitais provocadas pelo calor extremo, uma espécie de hibernação às avessas)
Um dia como o de ontem, que dizem ter sido o mais quente dos últimos cinqüenta anos. O solstício de verão já acontecera, mas parecia que a Terra continuava, distraída, a inclinar-se mais e mais em direção à fonte da vida.
Foi com certeza em um dia assim que um grego imaginou a lenda de Faetonte, o mortal que dirigiu o carro do sol tão desastradamente, chegando tão próximo que quase incendiou o planeta.




Desastre de Carnaval.
Esta é de arrepiar! No Rio, a escola aguarda sua vez de entrar no sambódromo. O enredo da escola era sobre os ciganos. Um cigano passa pelo belíssimo carro alegórico, olha e comenta: vocês esqueceram um elemento fundamental, o fogo. Onde há ciganos, há fogo.
A escola entrou na Sapucaí e o carro pegou fogo.


Devo agradecer ao FHC. .
Há anos com o salário congelado, só tenho a agradecer ao senhor presidente pelas melhorias na minha qualidade de vida.
Vejamos. A princípio, parei de comprar jornais e revistas, passando a ler no Sesc, o que me levou a encontrar com mais freqüência as pessoas amigas.
Aboli a carne do cardápio. Este alimento impuro e tóxico é com vantagem substituído pela soja. Em seguida, o açúcar. Doces, só em festas. Frutas naturais e chá amargo tem a dupla vantagem de preservar os dentes e manter a cintura fina.
O próximo corte foi a gasolina. Acordar uma hora mais cedo para caminhar até o trabalho é um hábito saudável. À tarde, faço uma caminhada maior, enriquecendo minha vida com a poesia do por do sol nos jardins da praia.
Em um momento de jurássica lucidez, dispensei o computador.
Em outubro troquei todas as lâmpadas da casa por um modelo mais econômico. Em janeiro desliguei o freezer – cozinhar legumes ao vapor diariamente ao invés de descongelar tortas e frangos traz a economia adicional de dispensar o micro-ondas.
Agora a insaciável FHC quer ainda mais economia. Desafiante!
Depois de horas de reflexão concluí que só me resta dispensar a TV. Afinal, é a TV ou o banho quente! Uma hora a menos de TV por dia significa trinta horas ao final de um mês.
O duro é que só assisto ao telejornal e se desligar a TV fico sem comunicação com o mundo - quando encostei o carro, o tempo de leitura no Sesc virou caminhada – e não poderei saber quando terminará este benéfico racionamento. Experimentei por uma semana – que benção! Sento-me no escuro em posição de lótus, fico zen e “vou-me embora pra Pasárgada, onde tenho o Homem que quero no país que escolherei.”



Hoje acordei saudosista.
Ando pela areia da praia, mas é o lago de Bebedouro que me vem à mente. Ante o pôr-do-sol, recordo as tardes de Bebedouro, com centenas de andorinhas no céu claro e o quadro magnífico das copas avermelhadas refletidas nas águas límpidas do lago. Se caminho pelas ruas, são também as ladeiras de Bebedouro que invadem meu cotidiano.
E as manhãs de domingo em Bebedouro, com a feira típica e as pamonhas feitas na hora; o jornal lido na varanda, o cachorro ao lado, o jardim florido em frente e a promessa de um dia inteiro sem nada para fazer!
Sinto-me estrangeira em minha própria terra, quando, à noite, o sono procura o canto ausente dos grilos.
Por que não sou como as árvores, que criam raízes? Sou antes como os pássaros, buscando a amplidão.


Há algumas semanas atrás, chegou um médico do Rio e foi procurando pedindo a chave de seu armário; como ninguém entendesse, ele explicou: onde posso guardar meus livros, meu avental.... e também estranhou não haver um telefone em cada consultório.
Pois hoje chegou uma louca de Recife, espantando-se por não haver ar condicionado no consultório e nem ventilador. E ante o olhar atônito do chefe e dos colegas a seu redor, saca do celular e disca: Alô! Fernando? É Malu! Pois imagine, estou trabalhando em um posto sem ar condicionado! Um total absurdo! Estou telefonando para reclamar e pedir que sejam tomadas as devidas providências.... E completou:
- Taí, chefe, já reclamei ao presidente, é melhor o senhor tratar de providenciar tudo.
O chefe, na maior cara de inocente, provoca:
- Que presidente?
- O da República, lógico.
Pode?


Sonho: ‘estou em um carro, no banco de trás: um negro sujo está encolhido no chão, vestido de preto, agachado, e resmunga palavras em alemão. Entendo ele dizer: Gesundheit. Encolho meus pés para não encostar nele.’
A situação da saúde está ruim, as perspectivas profissionais são péssimas!


Outro sonho: ‘flores, muitas flores, flores que desabrocham pela casa e estou ao lado de minha mãe e de meus filhos’.
Acho que existe a esperança de uma vida familiar melhor em 98.


A louca que chegou do Recife foi afastada para tratamento psiquiátrico. Quase à força. Primeiro o chefe proibiu o balcão de marcar consultas para ela; depois tentaram deixá-la na chefia médica assinando autorizações de consultas extras, mas a mulher é doida demais. Colocou uma placa de quase meio metro sobre o balcão com o nome dela escrito em dourado, um enorme vaso de rosas brancas sobre a mesa e um prato de salgadinhos; ao sair, o colega falou que ela esquecera os salgadinhos e a outra me sai com esta: esqueci, não, mas não mexa e não deixa ninguém mexer, que são para o santo. Para o Santo?
No outro dia, a mulher me chega descalça, com um biquíni molhado sob a saia, dizendo que saíra correndo da aula de natação, pois quase se esquecera que estava na hora de vir trabalhar. Aí, foi demais, mesmo.
Cada uma!...
quer enviar um comentário? colaboração? sugestão?

quinta-feira, abril 14, 2005

HAICAIS, DICCAS< HISTÒRIAS DE MÈDICOS E MAIS ...

Haicai de mestre
ao ser perseguido
o vagalume
se esconde na lua
Ryôta


Dica de sucesso da semana:

“Confie, como se tudo dependesse de Deus, e aja, como se tudo dependesse de você”. –
Ignácio de Loyola, jesuíta.


Dicas de sites, de literatura, é claro:

dê um clique, passeis por eles e divirta-se!!




Histórias de médicos

UM MILAGRE - conto de
Sonia Rodrigues

Até a idade de trinta anos o Dr. Hélio não acreditava em milagres.
Ele clinicava em Terra Roxa, cidadezinha situada em um lindo vale distante vinte e cinco quilômetros de Bebedouro, centro regional, à qual se ligava por estradas de terra íngremes e sinuosas, intransitáveis durante as chuvas, quando testemunhou um fato extraordinário.
Uma mulher trouxe para consulta seu filho de três anos. O Dr. Hélio notou uma cicatriz extensa no lado esquerdo do abdome do garoto, uma cicatriz pálida e retilínea, como a de uma cirurgia antiga, e perguntou o motivo daquela marca. Ouviu então uma estranha estória, no português cheio de erros dos caipiras:
“Doutor, eu nem sei o que lhe diga, nem eu mesma entendo o acontecido. O ano passado teve uma vez que caiu uma chuvarada que durou três dias. Nós mora a três quilômetros daqui, nós num tem carro, não, quando precisa tem a caminhonete do patrão, mas num dava jeito nem de a gente sair à procura do patrão tanta era a água que chovia, tudo era uma lama só, de noite, um breu que só vendo e o menino dana a se queimar de febre. Um febrão que dava inté medo. Como eu chorei aquela madrugada e me apeguei com minha Santa Rita a rezar por meu menino. De manhã cedinho o moleque aquietou-se e dormiu. A gente esperou um pouco até a água abaixar e fomo pra casa do patrão, que trouxe nós até o hospital. Daí quando eu vou abrir a camisa do moleque pro outro doutor examinar, dou um grito de susto, tava esta marca aí, só que vermelha e grossa, assim como uma carne inflamada e o médico perguntou:
- Que cirurgia foi essa?
- Mas num foi cirurgia nenhuma, não. Até ontem de noite num tinha nada aí, meu filho é sadio, nunca operou de nada, não.
- Como não tinha nada? Isso aqui é marca de cirurgia recente.
Eu fiquei toda arrepiada. O menino tava espertinho, sem febre, querendo comer, o doutor não achou nada e nós fomo embora, ainda levando bronca por não saber explicar que marca era aquela e ocupar o tempo do médico à toa.
Ora, vai que uma prima minha sabe da estória e diz que ouviu falar de um centro espírita e eu não queria ir não, que eu sou católica e não gosto dessas coisas de terreiro, não, mas tava encafifada e fui. Chegamo lá um senhor muito distinto olhou o meu menino, me olhou, eu nem falei nada, não, eu tava quieta, com medo, e o menino assim no meu colo, vestido e tudo. Pois o tal senhor distinto me diz:
- Você foi abençoada, filha. Essa marca em seu menino é de uma cirurgia espiritual. O menino teve uma inflamação no intestino, ia morrer, era de noite, chovia forte, você não tinha como chegar na cidade, então os espíritos operaram ele para salvar a vida dele. Agradeça a Deus, minha filha.
Eu tremia tanto que nem falar podia. Como é que aquele homem podia saber daquilo se eu nem falei nem mostrei nada?
Com o tempo a marca foi afinando, abaixando, agora está assim, este risquinho branco tão reto que inté parece feito com régua.
Eu nunca mais que voltei no centro.
Rezo toda noite a Deus agradecendo a vida de meu menino, mas não sei de explicação pra isso não. A minha Santa Rita dos Impossíveis é quem deve saber.”


DIAS DE OUTONO
parte 4
@ da autora
neste diário interior, onde as datas não importam, a vida que está oculta sob a pele, não vivida, mas pensada...
corre o ano de 1995


Jung costumava perguntar: qual mito está-me vivendo?
Então escrevi : MINHA LENDA

Mudei meu nome, cansei de ser guerreira.
Não mais Walquíria, e sim Sophia,
Dediquei-me aos livros e devorei bibliotecas.
De Tales a Saramago
Escarafunchei os séculos e as civilizações,
Sem aplacar minha sede,
Eu diria entes, minha fome,
De contato,
De afago,
De agrado.
Estou aqui, de peito aberto, desarmada,
E qual diamante, firo a quem me toca.
Objeto de desejo, não de amor.
O oráculo de Delfos, se existisse ainda,
Concordaria com a astrologia,
E com a numerologia
Que me decretam
Individualista,
Pioneira,
Solitária.
E eu buscando carinho...
Desejo a morte com a sofreguidão dos condenados à imortalidade.
Mudar o nome não basta.
Neste mundo que incendiou a Atenas de Péricles
E condenou Sócrates a beber cicuta,
Quem sou eu para implorar aceitação?
Quero ter o fim dos gregos valentes e virtuosos
Que os deuses arrebatam deste planeta hostil:
Mãe Deméter, inicia-me nos mistérios de Elêusis
E coloca-me nos céus, transformada em estrela!



A chuva que ameaçava cair iminente fez-me entrar no prédio onde mora minha mãe, a meio caminho de minha própria casa. Toquei a campainha:
- Estou sem guarda-chuva...
- Entre, eu estou almoçando. Com todos esses raios e trovões o tempo não melhora tão cedo. Quer almoçar comigo?
Sirvo-me de arroz , batata e bife. E aí minha mãe disse:
- Amanhã você me devolve o bife.
E eu me engasgo, é lógico.
E me lembro porquê decidiu morar sozinha. A gota d’água foi a conta do telefone. Eu pagava a minha parte nas despesas, conforme as regras da casa. Um belo dia mamãe me sai com outra das suas:
- Desconte o troco do mês passado.
- Que troco? Minha parte era R$7,22 e eu lembro perfeitamente que lhe entreguei exatos R$7,22.
- Nada disso. A conta exata era sete reais, vinte e dois centavos e meio!!!


Bem no horário de pico, no ponto em frente ao mercado, onde entra e sai uma multidão de passageiros, foi que eles entraram no circular, tagarelando animados.
- Lá vem a turminha levada – anunciou o motorista.
Uma meia dúzia de meninos e meninas, o mais velho não teria mais de sete anos, pálidos, magros, exibindo sinais evidentes de desnutrição em sua compleição óssea, cabelos ralos e quebradiços e olhos grandes brilhando curiosos.
Com a cumplicidade do cobrador, passaram por baixo da catraca, ajudando-se mutuamente, passando de mão em mão os livros escolares, esgueirando-se por baixo da estreita catraca, equilibrando-se no veículo em movimento como podiam, sem alcançar os altos canos de apoio. Não que fossem gastar o dinheiro da condução em balas, não; é que, não tendo como pagar, não fosse a vista grossa do cobrador, teriam de percorrer sob o sol a pino o longo caminho para casa.
Preparei-me para um tumulto.
O grupinho instalou-se no fundão, tão quietos e educados que nem parecia haver crianças no ônibus.
O circular seguiu pelos bairros periféricos de São Vicente, atravessou a ponte sobre o mar, passou sobre o manguezal, adentrou o continente, rodou um trecho movimentado de estrada até chegar a Humaitá.
Ali a turminha desceu, um auxiliando o outro para pular o alto degrau do ônibus, acomodando às costas as mochilas, acenando alegremente para os conhecidos.
E puseram-se a brincar e a cantar, com evidente prazer.
E eu perguntei-me como seria possível risos e felicidade naquela sujeira, naquela miséria, naquela longura?
Indiferente a especulações sociológicas, a cantoria espontânea espalhava-se por entre as ruas de terra, por entre as casas sem reboco com telhas de zinco.
Eu observava a cena como quem presencia um milagre. O ônibus afastou-se e as crinaças penetraram no coração da favela, a saborear a vida. Celebrando...


Está escuro. Estou com um recém-nascido sobre uma cama em um cômodo muito pobre. Vou fechar a porta e descubro que as portas e janelas não tem trinco e as grades estão quebradas. E não há luz.
É perigoso ficar ali e lá fora está escuro e ermo.
interpreto o sonho: É ruim ficar. É incerto partir. Estou sem segurança e só com meus novos projetos.(o bebê). Como consegui ficar em uma situação tão ruim?





Acordo tarde, perdi a hora. Enquanto procuro, em um aposento pequeno misto de quarto com cozinha, pelo telefone de meu chefe para comunicar meu atraso, minhas filhas perguntam quando mudamos. Lembro-me de que na quarta-feira estaremos viajando de Comedouro para Santos, de mudança, mas eu esqueci de pedir a minha transferência de emprego e de solicitar a transferência da escola das meninas, então, teremos de adiar a viagem.
Nossa! A vida voltou a ser uma bagunça! E eu nem me dei conta!



Esta aconteceu hoje com uma amiga minha, na barca do Itapema, aquela imensa favela do Guarujá– quem vai para lá se demite rapidinho, por isso o governo vai fazer um concurso específico para o tal buraco quente. Os políticos mudaram o nome do favelão para Vicente de Carvalho, por causa da má fama do lugar, mas mudar o nome não muda a realidade da coisa, e nós (o grupo dos sete azarados, é como nos referimos a nós mesmos) fomos temporariamente premiadas com uma nomeação para lá, por necessidade de serviço que esperamos seja breve. Vou contar a estória toda:
Chovia que era uma beleza. Um Turner se quedaria deliciado ante os matizes caleidoscópicos do mar em fúria.
Um dia em que um assalariado de juízo restaria em casa a prevenir-se da gripe. Mas não Luizinha, funcionária responsável, ciente de suas obrigações.
Luizinha embarcava pontualmente na barca das 6:30 e atravessava o Atlântico rumo à favela onde trabalhava.
Ela só faltara uma vez, quando ventos acima dos 60 km/h impediram a navegação das balsas.
Ela enfrentava estóicamente, a depender do tempo, dez quadras de pó ou lama para garantir o emprego federal arduamente conquistado após meses de estudo e insônia.
A seu lado aglomeravam-se os miseráveis habitantes do cortiço, maltrapilhos, fétidos, piolhentos, encarando com rancor seu corpo bem nutrido e bem cuidado. Por mais que se vestisse com simplicidade, ela sobressaía na multidão, deslocada de seu meio, de suas raízes.
Largando por um momento o guarda-chuva a seu lado, Luíza buscou na bolsa um lenço e assoou o nariz.
A travessia terminava. A moça tateou pelo banco em vão até encontrar o olhar duro da corpulenta mulher ao lado, que a fixava agressiva, segurando nas mãos o precioso guarda-chuva.
A cena armada para o escândalo.
Luizinha pensou em protestar, mas quem disse que a voz lhe obedeceu?
E o olho mau da ladra insolente, provocador, zombeteiro...
A raiva aflorou no rosto da moça sob a forma de lágrimas. Todos os seus músculos contraíram-se em um patético esboço de reação.
Muda de espanto, Luizinha observou a outra afastando-se imponente, imensa, ameaçadora, a encarnação dos protestos da Miséria contra a Abastança.
E Luíza lá, imóvel.
Uma mulher desprotegida exposta à tempestade.


Notas de rascunho para uma palestra sobre leitura:
Pais e educadores têm a oportunidade de influenciar profundamente, ou não, a personalidade de suas crianças. Podemos escolher se queremos crianças quietas, assustadas e infelizes, prisioneiras dos nãos e de muitas regras; ou poderemos nos armar de um caminhão de paciência e orientar crianças alegres, espontâneas e ativas.
A escolha do que fazer com o precioso tempo de nossas crianças é nossa
A leitura é um bom hábito a ser cultivado pela vida afora. O conhecimento é a melhor herança que podemos deixar a nossos filhos. É a única herança que ninguém lhes poderá tirar.


Minha opinião sobre a lei mosaica ‘Honrarás pai e mãe.’
Se o profeta desconhecesse menos a humanidade, teria acrescentado um décimo primeiro mandamento: ‘Só conceberás crianças desejadas’.
Que mundo seria o nosso, se cada criança recebesse carinho e atenção. Se cada pai ou mãe escolhesse como prioridade a felicidade de seu filho!



Sonhei que entro em uma balsa enorme, com lugar para dezenas de carros e dois andares para centenas de pessoas. Embarco para uma viagem em um lindo rio com corredeiras e com locais maravilhosos, paramos diversas vezes para nos banhar nas piscinas verdes com águas quentes e ouvir o maravilhoso murmúrio das cascatas. Nos trechos acidentados o barco corre por trilhos, como um trem. As margens são sempre verdes, de mata fechada. Fico sabendo que aquela barca-trem foi construída para evitar que o maravilhoso rio fosse destruído por uma rodovia ou por uma barragem. Estou admirando cascatas, parada em uma das piscinas verdes e quentes, a ouvir o extasiante murmúrio das ondas, quando, às sete da manhã, em pleno feriado, minha mãe me telefona para dizer algo que poderia muitíssimo bem dizer às dez.
Interpretação do sonho: a vida – rio – tornou-se segura com o barco-trem, assim a ameaça das corredeiras tornou-se fascinante e bela; o verde é a saúde, a esperança; o murmúrio das águas é a harmonia com o cosmos e o calor é o amor.




Estamos em uma época violenta, e trabalho em uma região violenta. Mas esta tal estória do governo querer desarmar a população, sei não. Não uso armas, mas não concordo com isso. Quem tem de ser desarmado são os bandidos, pô! Atravevo-me a fazer umas
PROFECIAS

Kali, a deusa negra, dominou durante a Era das Trevas.
O Grande Ditador esgotou os recursos conhecidos no combate ao mal – epidemias, ignorância e crime desorganizado.
Impediu-se a reprodução dos dobermans. Castraram-se os pitbulls. Proibiram o porte e o comércio legal de revólveres e similares. Os contrabandistas exultaram e os criminosos decretaram o monopólio das armas de fogo.
A seguir, facas e tesouras (e qualquer tipo de objeto perfurante ou cortante) foram retirados de circulação. As academias de artes marciais proliferaram e os perigosos assassinos multiplicaram-se em proporção malthusiana.
‘As mãos matam! Que sejam cortadas todas as mãos do reino!’, exigiu o Grande Ditador.
‘Alto lá! Excelência...’, e, invocando seus conhecimentos médicos, o Ministro da Saúde explicou que a agressividade humana localiza-se no cérebro, mais precisamente em uma determinada região do hipotálamo...
Mirando entre os olhos do ministro, o Grande Ditador atirou, e, verificando a exatidão da informação, ordenou:
‘Destruam todos os cérebros da Terra!’
Ao fim da tarde, o Ministro do Planejamento apareceu para comunicar que a ordem fôra cumprida. A onda de violência fôra detida, pois todos os cérebros do planeta...
‘Bang!’ – um tiro certeiro do governante interrompeu-lhe o discurso.
Faltava um...
O último Homo violentus sente frio. Em sua vaidade, compreende que ninguém rezará por sua alma após a morte.
O sol mergulha no oceano.
Indra pisca e recria os deuses e o universo.
Prometeu modela no barro molhado por suas lágrimas a sexta raça humana.
Às portas do Éden, Lúcifer conspira com Gabriel. A serpente foi colocada à porta do inferno e os frutos da árvore da vida distribuídos a todos os habitantes do globo.
Betinho ajuda o chefe Seatle a colocar um cartaz à entrada do paraíso:
“A Terra é sagrada. Somos os guardiões da herança de nossos filhos.”
A nave Interprise traz um recado da Federação: a cláusula da não intervenção nas sociedades primitivas foi reformulada e eles estão de olho em nós!
Como? O que aconteceu?
Desafiado por Jeová, a quem acusou de milenar falta de imaginação, Dias Gomes aparece para escrever o enredo de “Era de Aquário”.





Trapalhadas genéticas com as quais tenho me deparado em meu trabalho:
Na mesa ginecológica está deitado um homem.
Desconcertado, o médico observa sucessivamente a enfermeira, que se engasga de indignação e a loira glamurosa de vestido rosa cuja voz ansiosa pergunta como está o nenê.
O médico responde que vai fazer um ultra-som. Não se trata apenas de uma manobra para ganhar tempo. Enquanto grossas gotas de suor escorrem por sua testa, apesar do ar condicionado, o médico lembra-se dos casos escabrosos que já presenciou ali, no departamento de sexualidade humana.
Enquanto explicava para o paciente a possibilidade de uma gravidez psicológica, procurava por qualquer coisa fora do normal, como uma gônada indiferenciada, um resquício de útero...Colhido o cariograma, constatou-se o resultado: 46XY, homem normal. Ou quase, visto o cidadão estar absolutamente convencido de ser mulher e estar grávida.
Transexualismo? Não. Psicose pura.
Alguns dias mais tarde, a mesma enfermeira protesta:
- Outros daqueles homens que querem mudar de sexo. Qualquer dia desses, crio juízo e mudo de emprego. Que indecência!
O médico lhe pediu que sentisse um pouco de paciência com o sofrimento humano.
- Ora, doutor, um homão daqueles! Pouca vergonha é pouca vergonha!
- Bem, vou abrir uma exceção e quebrar o sigilo médico, para você aprender a não julgar pelas aparências. Veja o resultado do cariograma daquele homenzarrão, daquele homão, como você diz.
E ela leu: ‘evidenciou-se a existência de três linhagens celulares: 46 XO, 46 XX e 46 XY, sendo o indivíduo em questão, um mosaico.’ Que quer dizer isto, doutor?’
- Pois então imagine a confusão dentro deste indivíduo que tem um sexo genital masculino, um sexo psicológico feminino e um sexo genético misto.
- Como?
- Às vezes Deus cochila e deixa a acabamento de suas criaturas aos descuidos do acaso. E os pobres indivíduos ficam por aí sofridos e incompreendidos. A zona da intersexualidade humana é nebulosa.


O caso que deixou o pessoal da clínica mais atrapalhado foi o do casal que queria ter um filho de qualquer jeito. Após três anos de casório, ainda se tratavam de benzinho pra cá e pra lá. Nenhuma queixa de insatisfação sexual. Apenas desejavam um filho e o marido autorizou a inseminação com material do banco de sêmen, caso verificassem que ele era estéril. Sendo ele estéril, o ginecologista, muito afoito, tratou de ir inseminando a mulher, sem espera o parecer dos colegas. Afinal, o marido autorizara. O urologista, contudo, achou a distribuição de pelos do rapaz estranha e notou uma má formação, uma hipospadia perineal, que não fora corrigiada por diversas razões: falta de recursos financeiros, medo da complexidade cirúrgica, o paciente não via inconveniente em urinar sentado e a esposa tampouco se importava com este detalhe. A gravidez já ia pela terceira semana, sucesso comemorado pelo casal com champagne à luz de velas e muitos benzinhos, quando o geneticista convocou a equipe e perguntou se alguém sabia informar como o casal mantinha relações sexuais. O motivo da consulta não fora disfunção sexual, aliás o casal era evidentemente feliz. O geneticista revela:
- Ereção evidentemente este indivíduo não tem mesmo e pouco me interessa o que eles fazem ou deixam de fazer. O fato é que estou com o cariograma deste marido na mão: 46 XX, mulher normal.
Foi uma tremenda confusão. Depois de muito bate-boca, a equipe resolveu deixar o caso no mais absoluto sigilo. A inseminação já estava feita, se falassem a verdade iriam provocar muita confusão e sofrimento. Como se diz a um homem apaixonado que ele é uma mulher? O sujeito com certeza se suicida. Esta é uma situação completamente absurda.
Mas, como será que eles fazem sexo?????




sábado, abril 09, 2005

NOVIDADES






Haicai de mestre


um p�ssaro
companheiro de caminho
pelo campo seco


Senna



Dicas de SUCESSO

Aprenda com os mestres:

Sempre fa�o o que n�o consigo fazer para aprender o que n�o sei�
Pablo Picasso


Dias de Outono

Parte 3

@ da autora
Mem�rias de uma vida interior, onde as datas n�o importam.
Para situar o leitor: Corre o ano de 1994, ainda...




Procuro novos sapatos em um restaurante, encontro sand�lias brancas e experimento, coloco um p� e percebo que o est�o servindo a comida, ent�o pe�o ao gar�on que guarde as sand�lias para mim at� eu retornar da mesa. Na mesa, meu pai est� sentado ao lado de outra mo�a e me ignora. Ali�s, meu pai � barbudo e eu n�o o conhe�o. Confusa, saio e vou para casa, mas estou sem chaves, chamo um chaveiro para trocar o miolo da fechadura, nisto chega minha filha e abre a porta com sua chave. Fico muito confusa, pois o miolo foi trocado e a chave velha serviu na fechadura nova.
Troca de chaves, troca de sapatos. Um sonho sobre h�bitos velhos e novos.



BOM DIA

Comece bem o seu dia
Usando sua fantasia
Para buscar alegria
Energia
Simpatia.

Imagine, a cada manh�,
Que est� abrindo um port�o.
O que haver� do outro lado?
Ora, um lago!
N�o sei se h� patos,
Peixes,
Flores ou lenha em feixes.
Olhe ao redor e descubra
Se h� c�u claro ou espessa bruma.
Retire toda a roupa
Enrole-a em uma trouxa
E por sobre o ombro esquerdo
Atire seus trapinhos.
Entre no lago,
Mergulhe,
Pule,
De uma s� vez ou aos pouquinhos,
De seu jeito,
De seu modo,
Fique inteira sob a �gua,
Fique o tempo que quiser,
Feche os olhos ou abra os olhos,
Perceba tudo o que puder,
Movimentos, toques, sons,
E atravesse o lago,
Saia da �gua,
Saia do lago,
Na outra margem h� uma muda
De roupa nova e enxuta.
Vista esta roupa e repare
Em seu modelo, suas cores,
Sua textura e espessura
E veja como lhe assenta.
Saia agora do jardim
Pelo port�o por onde entrou.
Abra os olhos, v� para a vida,
Se � pesada a sua lida
Ou se � leve a sua sina,
Eu n�o sei, mas lhe garanto,
A cada manha voc� pode
Refrescar-se em seu pr�prio lago
E vestir um traje adequado,
Folgado,
Requintado,
Amalucado,
Melhorado,
Engra�ado,
-em qualquer caso �
Encantado.

Bom dia n�o s�o versos de p� quebrado, e sim uma t�cnica de medita��o de um tal de Dr. Epstein, especialista em cura por imagens, cujo livro eu estou estudando.


Perco sangue �s baciadas, tenho muitas c�licas e, de repente, na cuba hospitalar, vejo o �ltimo peda�o expelido: um grande bicho verde e amarelo, parecido com um marisco, seco e morto. Ser� um sonho de cura? Finalmente meu �tero parou de chorar ou expeliu o monstro devorador de homens? Uau, que freudiano!
Verde/amarelo � Brasil � morto - ou ser� que estou chorando porque nasci brasileira?


Uma mulher sabe que envelheceu quando est� em uma reuni�o e algu�m lhe comunica que h� um homem � sua procura e o grupo em volta diz com unanimidade que com certeza trata-se de seu filho.



Voc� sabe o que � a t�o falada e atual s�ndrome da p�nico?
� o que sente o n�ufrago vendo passar ao largo o navio enquanto em suas carnes se encravam os dentes do tubar�o.
� assim com ser torturado pela Tribunal da Inquisi��o.
� quando procuras por teu anjo da guarda e te deparas com os guardi�es do Umbral.
� o que faz um n�o crist�o entrar em uma igreja e apelar para Santa Rita dos Imposs�veis.
Tu te sentes como um cristal estra�alhado e ouves � tua volta: ��s forte; ag�entas�.
Tu �s um sobrevivente e sofres como um �ndio aprisionado, um guerreiro ferido, um cavalheiro desonrado.
Deixa de lado todo aquele jarg�o psiqui�trico que n�o consola a tua dor profunda.
Vivemos em uma sociedade b�rbara, em que atingem o poder e o sucesso aqueles que usam sem escr�pulos da maior viol�ncia.
Sossega, nada h� de errado contigo.
Se n�o �s um alienado, como n�o entrar em p�nico?


Minha lista de compras: dois camelos. N�o sou �rabe nem moro no Egito. Simplesmente estou completando o pres�pio.

1995


Meu pai era conhecido como 'o homem da maquininha' porque fazia contas em um soroban. Aprendera com amigos japoneses a usar este instrumento de c�lculo e, em todas as elei��es, convocavam-no para mes�rio. E por v�rios dias ele ficava trancafiado com outros escolhidos a apurar os resultados voto a voto, urna a urna. Homem simples, aqueles eram seus dias de gl�ria _ ele saboreava o prest�gio e a admira��o dos companheiros por quem conseguira arrancar um segredo aos japoneses.
Em casa, ele tentava pacientemente ensinar-me o processo. Enquanto ele ditava as parcelas, eu rapidamente fazia os c�lculos _ de cabe�a. Meus dedos canhestros invariavelmente esbarravam em outras fileiras, desarranjando as dezenas antes de somadas as unidades e era preciso recome�ar. Papai propunha-se a zerar o instrumento, ao passo que eu, para economizar tempo, nele 'escrevia' o resultado da soma, j� feita mentalmente. O curioso � que papai lamentava minha total incapacidade para as matem�ticas e perguntava-se o que seria de mim, quando tivesse de somar longas listas de algarismos, como, por exemplo, verificando as despesas das compras mensais.
Se meu pai pudesse prever o futuro, teria poupado preocupa��es. A cada m�s � mais f�cil contabilizar as compras da casa. Os abarrotados carrinhos de supermercado, em tempos de real, transformaram-se paulatinamente em minguadas, leves sacolinhas.
E eu retiro apenas um d�gito por dia para calcular o tempo que falta para o t�rmino do mandato de FHC.


Temos em fevereiro uma tradi��o de fam�lia. Fevereiro � o m�s das uvas pretas. Pequenas e doces, d�o um licor delicioso e servem para fazer um tipo de bolo cuca simplesmente di-vi-no.
Lembrando-me da emo��o que eu sentia em menina ao acompanhar a matura��o da bebida, expliquei para minha filhinha o que pretendia fazer.
- Posso ajudar?
Equilibrando-se sobre um banco para poder alcan�ar a pia, com um avental quase t�o grande quanto ela, a pequenina lavou cuidadosamente os cachos, destacou as frutas e despejou-as uma a uma pelo estreito gargalo. A seguir, com minha ajuda e a de um funil, despejou a��car at� cobrir completamente as uvinhas.
- E agora?
- Agora � tampar, colocar aqui no escurinho e esperar quinze dias.
Todos os dias ela abria v�rias vezes a porta do arm�rio e espiava, e quando finalmente ficou pronto, coamos cuidadosamente o caldo espesse e perfumado para a licoreira da cristal.
A ocasi�o merecia convidados especiais. Os av�s foram convidados para experimentar o licor, que ela serviu em bandeja de prata, o peito estufado de orgulho, sorrindo feliz:
- Eu fiz sozinha!
A cada Carnaval, rotineiramente, refa�o meu estoque de licor de uvas pretas, mas nenhum ser� t�o saboroso quanto o daquele ver�o.



Temos a possibilidade de criar todas as trapalhadas poss�veis por n�o saber usar o tremendo potencial de nosso c�rebro, este cachorrinho obediente que faz exatamente o que a gente pede, sem julgar. Como o caso daquela mo�a que acendeu um cigarro dizendo: �este � o �ltimo cigarro que fumo�, e caiu infartada, pois esquecera-se de avisar que pretendia abandonar o v�cio.
J� vejo quem me olhe desconfiado, achando que alucino.
Minha m�e entrou em um api�rio afirmando que viera ali expressamente para ser picada por uma abelha. J� adivinhou? Uma abelhinha voou direto para ela e picou-lhe a ponta do nariz. Ningu�m mais foi picado.
Felizmente a maioria de n�s aprende a desejar melhor: a m�e que n�o tem tempo de adoecer, a estudante que de alguma forma estuda exatamente as quest�es do exame, o motorista confiante que sempre encontra uma vaga justo em frente ao port�o, em um estacionamento lotado.
Por isso falo de meus defeitos no passado e de minhas realiza��es no presente. E n�o ligo se me chamam de esquisita.
Esquisito, no espanhol, � algo bom, especial e �nico. O c�rebro humano � mesmo muito, muito esquisito. Como cada um de n�s.