segunda-feira, outubro 07, 2013

Algumas historinhas engraçadas e reais de quanto as minhas filhinhas eram pequenas.

Pior que bicho papão.


Já ouvi muita gente assustar criança com bicho-papão, com velho do saco,com morcego.
Eu própria passei a infância pensando que os mendigos comiam crianças e não passavam de bruxos disfarçados. Quando brincávamos no jardim, uma de nós sempre ficava de guarda para avisar quando um mendigo passava:
- Olha o velho do saco!
Uma correria. Toca a esconder-se, criançada! Só voltávamos ao jardim após o perigo passar. Espiávamos o velho mendigo sumir ao dobrar a esquina, nos seu passo arrastado, saco jogado às costas. Hoje os mendigos estão tão mais pobres que nem saco tem para levar às costas.
Fernanda criou-se diferente, sem mentiras, sem rodeios, com respeito e amor. Por isso, quando não entende os  motivos dos adultos, não se convence a obedecer e segue sua própria cabeça.
Não há como convencê-la a permanecer sentada durante o almoço. Quer correr lá fora, tocar piano, ler gibi, espiar a televisão e comer nos intervalos – um tumulto!
- Vem sentar.
- Não quero.
- A comida esfria.
- Deixa esfriar.
Acontece que, agora que já sabe andar, Tatiana, a irmã menor, vinga-se dos tapas, mordidas e empurrões que leva da irmã. A nenê desforra-se beliscando, mordendo, fazendo cócegas na irmã; é só ver Fernanda sosssegada, lá vem Tatiana azucriná-la.
- Fernanda, volte aqui!
- Volto nada, vou ver televisão.
- Se você não sentar quieta para almoçar direito, eu manda a Tatiana pegar você!
Pode? E deu certo...Fernanda veio correndo, sentou-se e comeu como uma ‘lady’.

O degrau


Tatiana? Ora, onde mais? No degrau!
Vou espiar a garotinha, que ri toda feliz a sacudir a mamadeirinha e a boneca.
Quem é que não conhece a magia de um degrau?
Eu mesma tinha um degrauzinho encantado, o meu degrau de estimação, onde eu me instalava por horas para sonhar ou para dissipar as tristezas da vida. (as crianças da roça tem suas árvores, eu era uma criança de apartamento)
Meu degrau dava para o quintal do vizinho, e de lá eu espiava o cachorro, as galinhas, os meninos da vizinha, vovó fazendo almoço. Eu tomava sol, matava formigas, esburacava os cantinhos dos ladrilhos, lia gibis;
Hoje em dia já não existem degraus nas portas das cozinhas, nem quintais, nem galinhas, mas continuam existindo crianças, teimosamente persistindo em suas tradições de crianças: o peão, a pipa, o balão, e um cantinho no degrau.
O degrauzinho de Tatiana é o da frente da casa, a meio metro de um muro alta tendo por trás uma avenida. O pesadelo de minha mãe é um caminhão desgovernado que subirá a calçada, derrubará o muro e esmagará a netinha. Quando apelamos para o bom senso e demosntramos o quanto suas preocupações sobre o terrível acidente são improváveis, ela invoca suas visões premonitórias e nos calamos. Afinal, mamãe previu a avalanche do monte Serrat em idos de 55 e sonhou com a enchente do Rio de Janeiro em 66.
E, na verdade, o degrau foi vitima de um acidente perigoso.
Corria o ano da graça de 1983, o ano da Grande Chuva = lembram-se daqueles oito meses de chuvas devastadoras, ininterruptas? Pois bem, após a primeira semana ensolarada, quente, bem santista, madrugada alta, um estrondo súbito acorda toda a vizinhança.
Mamãe abre a janela e espia. No lugar do degrau, um monte de entulhos. Entulhos na calçada. Entulhos na rua.
A pobre laje, desacostumada já com o bom tempo, ruíra, arrastando consigo o telhado, beirais, calhas e um bocado do muro. Vista da rua, certamente, a casa lembrava uma foto de despojos pós-guerra.
Felizmente não houve feridos.
Se fosse dia...
Se Tatiana...
Como, porém, catástrofes não acontecem duas vezes no mesmo local, continua Tatiana sossegada e feliz a desfrutar do seu direito inalienável de criança – o ‘seu’ degrau.

Em volta do quarteirão


Tatiana não sabe falar, por isso puxa a mãe para a porta da rua, aponta e chora.
Quando nenezinha nova, a pequena mal se mexia. Não queria virar-se, não queria arrastar-se, não queria engatinhar. Parecia pensar: ora, não vale o esforço. Agora, porém, só quer andar, correr, trepar e passeat.
Os passeios de todos os fins de tarde são o encanto da menina. Das meninas, pois Fernanda, com seus três aninhos e meio, complementa:
- Mãe, vamos dar uma volta no quarteirão?
Passeios longos, distantes, como praia, o aquário, o orquidário, parquinhos, são ótimos só de vez em quando, com aquele gostinho de fim de semana. Sempre, enjoam. A volta no quarteirão, no entanto, é sempre recebida com alegria, e, a cada volta, dia após dia, mês após mês, parece esperar-nos uma surpresa, ali, logo ao dobrar a esquina.
A primeira brincadeira é trepar no murinho do prédio ao lado e andar equilibrando-se de braços abertos. Assim o faz Fernanda, e Tatiana, como ainda é pequenininha, senta no degrauzinho para espiar a maninha.
- Mãe, olha o meu ‘amigo’! Vou dar um tciaozinho.
As crianças colecionam amigos: o zelador do prédio ao lado, o velhinho de bengala que toma sol ao portão, o rapazola da garagem, o guarda em frente à casa do general.
Tatiana recolhe folhas e as vai entregando para mim, encantada em ver como são diferentes: uma grande, uma comprida, outra tão pequenina, outra seca e barulhenta...já para Fernanda, as folhas são espadas, confetes ou comidinhas.
Portões, murinhos e grades são ativamente pesquisados. É preciso experimentá-los de todas as maneiras: subir, balançar, trepar, pegar, bater. E, a cada volta, descobre-se um detalhe, que, no dia anterior, passara despercebido.
- Olha o micinho, chama ele, Tati – grita Fernanda, apontando o gato.
E a menor esfrega os dedinhos e grita. Tatiana prefere os cachorros, que ela persegue sem o menor cuidado; chega a agachar-se no chão para espiá-los pelos vãos das portas, quando avista seus focinhos.
Brincam as duas de fugir, de pega-pega, dançam, pulam, e, se ninguém as impedir, são bem capazes de deitar no chão e rolar, de pura alegria.
Fernanda foge de estranho.
Tatiana, ao contrário, não sente a menor inibição, acena e envia beijinhos para quem lje agrada, aproxima-se dos outros bebês para espiá-los e chega a tocar em seus brinquedos e a conversar – em tatianês, é claro.
Voltar para casa? Nem pensar! Tatiana agacha-se e balança a cabeça. Fernanda senta no chão e pede ‘só mais um pouquinho, um poucão’.
É preciso convencê-las com o bifinho gostoso, a estorinha que mamãe vai ler, ou o infalível, consagrado e sempre eficiente tapa no bumbum, o melhor aliado das mães desde as cavernas até hoje.



E vivam as baratas!


Vovó Tereza poucas vezes vira criança tão mexedeira quanto Tatiana. A sem vergonha da nenê pouco se importava com os nãos da vovó e até oferecia a mãozinha para apanhar, dizendo a sorrir:
- Bate, boba.
A nenê gostava especialmente do armário sob a pia, repleto de panelas; das gavetas de talheres e do garrafeiro lá nos fundos do quintal.
Pobre vovó! Fazia o almoço pulando sobre panelas, tropeçando em frigideiras, desviando dos talheres que a netinha espalhava pelo chão. E ainda corria a cada barulhinho para evitar que as garrafas despencassem e machucassem Tatiana.
A pestinha corria, ria, fugia, e, para piorar, começava a trepar e a subir na pia, na mesa, no tanque... um desessossego!
Durante um cochilo da pequerrucha, vovó surpreendeu-se a resmungar:
- É bem quando preciso de uma barata que não aparece nenhuma!
Para que estaria vovó  procurando uma barata?
Pois a netinha encontrara um desses bichos nojentos, morto sob o armário da pia: gritara, vociferara, apontara de longe e parara de mexer nas panelas. Isso dera à vovó uma idéia estranha...
Estranha, mas eficiente.
Agora, vovó trabalha sossegada, enquanto as netinhas brincam, andam de carrinho no quintal ou jogam bola e balançam-se no jardim.
Há uma barata em frente à pia, uma barata na entrada da copa, outra defronte ao garrafeiro e uma perto da lata de lixo.
Não se assustem, vovó varreu a casa hoje, sim.
As baratas são para afastar Tatiana.

A inauguração do bonde


Em 1971, enquanto o mundo inteiro procurava alternativas para o consumo de petróleo, o Brasil tomou uma dessas atitudes que brasileiro não entende: desativou os bondes.
Treze anos após, o pobre povo, cujos bolsos vazavam, onerados pelas caríssimas passagens de ônibus, conseguiu convencer o prefeito a reativar as linhas de bonde. Assim, no domingo, dia 10 de junho de 1984, Tatiana inaugurou o bonde.
Tatiana?
Sim, senhores. A pequena Tatiana saiu de casa cedo, às sete da manhã, ainda de pijama, no colinho do vovô, chupando o dedinho.
A linha 13, ou turística, percorreria a orla da praia desde a praça defronte à igreja do Embaré até o Canal 5. O motorneiro, com seu ‘guarda-chuva’ – aquela vara de metal comprida usada para conectar ou desconectar as junções do trilhos – estava a postos para testar o bonde, totalmente restaurado, brilhante, com jeitinho de novo.
Tatiana chegou e apontou:
- Oi, vô.
Alguns meninos sassaricavam por ali, ansiosos por experimentar o bonde.
- Vai andar, moço?
O motorneiro, em resposta, puxou a campainha: bléim, bléim – e abriu as portas, chamando a petizada.
Vovô ia subir, também, porém  o motorneiro o chamou para sua cabine, agarrou Tatiana e instalou-a na direção.
Lá partiram todos, as rodas pesadas do veículo range-rangendo morosamente sobre os trilhos.
A nenê ria, batia palmas e tagarelava em tatianês. Os meninos assobiavam. Vovô ria.
A viagem inaugural do bonde 13 ocorreu oficialmente às 10 horas da manhã, com discurso, fogos de artifício e a presença do prefeito.
A primeira viagem do bonde, contudo, a primeiríssima, foi inaugurada e ‘dirigida’, com algum auxílio do motorneiro, pela pequena Tatiana.

Matinê

Tatiana no cinema diverte-se a valer. Senta na última fila para poder trepar no parapeito que separa as cadeiras do corredor e fica lá no alto, balançando os pés.
Sessão da tarde no meio da semana é melhor. Tatiana troca de cadeira, passeia entre as fileiras, apóia os pés na fila da frente e corre pelos corredores.
Tagarela, Tatiana conversava animadamente com sua amiga. Só que, além delas, sentadas na última fileira, dois garotos na primeira fila preparam-se para assistir ‘O pimentinha’.
Um giz voou na direção das meninas, que gritaram. Outro. E outro.
- Moleques! Parem com isso!
- Cale a boca!
- Calo, não.
- Então, vai giz!
A batalha instalou-se animada entre a primeira e a última fila, com gritos entusiasmados dos participantes.
Ai Tatiana lembrou-se que trazia na mochila – quem diria – um estilingue. Igual ao do Pimentinha.
- Faço pontaria e sou invencível com meu super-estilingue. Vocês vão ver só o que é bom pra tosse, seus bobões.
Plaft! Plaft! Ploft!
Ai! Ui!
- Assim não vale!
- Sua cara de pepino!
- Bobão!
- Lá vai giz!
Ai! Ui! Ploft!
- Urra! As meninas estão ganhando!
Na animação da batalha, não perceberam a aproximação do lanterninha.
- Meu estilingue! Devolve o meu estilingue!
- Silêncio! Comportem-se ou expulso vocês da sessão.
- Mas o filme mal começou....
- E o meu estilingue?
O homem afastava-se. Tatiana o seguiu.
- Quero meu estilingue.
- Vou entregá-lo ao gerente.
Na saída, Tatiana chamou o gerente. Levou uma severa descompostura e neca de estilingue.
- Devolve meu estilingue. Eu já vou embora mesmo. Eu comprei com o dinheiro de minha mesada. Devolve.
O gerente não devolveu.
Aí deixamos cair o pano, discretamente, sobre a lamentável cena que se seguiu, na qual Tatiana perdeu a classe, caprichou no pontapé na canela e o gerente... bem, o gerente resolveu que menores, a partir de então, só podem entrar no cinema acompanhado dos pais, mesmo nas sessões da tarde, e, principalmente, se os menores forem fortes o bastante para se atracarem com o gerente.



terça-feira, janeiro 03, 2012

A moeda mágica do Juquinha

A moeda mágica do Juquinha

No tempo dos sonhos


Capítulo um
Juquinha e seus avós


Os avós de Juquinha moravam no interior do Brasil, no estado de São Paulo, em um sítio em Taiúva. Chamavam-se Dirce e Mário, e haviam sido professores, antes da aposentadoria.

Dirce e Mário haviam estudado História e Museulogia, lecionado em universidades importantes, realizado algumas pesquisas de campo, publicado trabalhos acadêmicos, enfim, haviam contribuído o seu tanto para melhorar o mundo, e todos os seus filhos e netos adquiriram, por convívio, o amor às viagens e a curiosidade pelas línguas, arte e cultura de outros povos.

Embora os avós não houvessem viajado muito pelos meios usuais– salário de professor no Brasil não é lá muito – haviam viajado, e muito, nos livros, filmes e computadores.

Sua filha caçula, ainda solteira, Lúcia, é que viajava muito, por ser solteira, e estava, no momento em que começa esta história, voltando de férias.

Juquinha, gauchinho de Porto Alegre, estava há dois dias em férias na casa dos avós, e esperava ansiosamente pelo retorno da tia, especialista na arte de contar histórias, e que chagaria naquela tarde. E Juquinha, como todas as crianças, saboreava com prazer as boas histórias.

Corria o mês de novembro, e, pela proximidade do fim do ano, naturalmente todos comentavam sobre os projetos para o ano novo, porém, desta vez, às vésperas de 2012, Juquinha começou a ouvir na televisão estranhos boatos sobre o fim do mundo. E foi falar com o avô, preocupado.

- No ano mil houve boatos semelhantes – tranquilizou o avô. – Muitos, desesperados, cometeram suicídio, muitos deram todo o seu dinheiro aos pobres, muitos se arrependeram de seus pecados e estou certo que alguns espertalhões andaram vendendo pedacinhos do céu, ou as tais bulas papais, que era o jeito da moda de os ricos comprarem o perdão pelos seus abusos.

- Também houve um boato semelhante em uma das vezes em que o cometa Halley passou pela terra – falou a avó – houve quem desse festas do cometa, que eram festas luxuosas em que as pessoas se despediam da vida, e afinal, o cometa passou, foi embora, e estamos aqui.

Então o avô contou para Juquinha sobre os fabulosos calendários maias, extremamente precisos; e sobre todas as profecias que haviam se referido a 2012, mas, veja bem, você sabe como são as profecias, sempre nebulosas, deixando espaços abertos para a imaginação, e de repente, tudo o que elas dizem é que um ano termina e começa outro.

- Você sabe, querido, há muito mistério neste mundo, muita coisa que o homem não sabe, e então, existem os cientistas, que estudam as coisas que podem ser vistas, fotografadas e documentadas, e há os místicos, que interpretam o que não sabem com toda sorte de símbolos, profecias e outras coisas que eu, como tenho a mente aberta, deixo na gaveta das idéias que estão esperando comprovação. Pois há mesmo coisas muito intrigantes em nossa história, como o mapa de Pire Reis, na Idade Média, um mapa cartográfico em que apareciam os continentes ainda não oficialmente descobertos pelos europeus, e que desenhava o planeta com uma precisão impressionante, visto de cima, sendo que na época não havia satélites, aviões ou helicópteros.

- E mesmo lá, onde sua tia esteve, na Nova Zelândia, há um mito muito curioso, dos primeiros povos que lá chegaram, há milhares de anos, pois o nome da ilha norte da Nova Zelândia significa peixe, porque ela se parece com um peixe, e o problema é que uma pessoa só pode perceber a diferença do espaço, e, pelo que sei, canoas não voam.

Juquinha ficou pensativo.

- Bem, vamos buscar sua tia – decidiu o avô – o ônibus deve estar chegando nos próximos minutos.

E assim, entraram todos no carro do vovô e foram buscar a tia com suas malas.

A rodoviária de Taiúva era bem pequena, e, sem bagagem, bastava andar três quadras para chegar em casa. Assim, logo que o ônibus vindo de Ribeirão Preto encostou, Lúcia pode ver a família acenando para ela da plataforma.





Capítulo dois
Juquinha e a tia Lúcia



Foi uma sucessão de abraços apertados e beijos afetuosos.

Lúcia era uma mulher esguia, ágil e risonha.

Seus amigos costumavam perguntar qual o segredo de sua aparência adolescente, e ela dizia que a convivência com seus sobrinhos a mantinha jovem.

Lúcia tinha cinco sobrinhos, e parecia destinada ao celibato; aproveitava sua liberdade para viajar, ler, e ajudar os irmãos com seus sobrinhos. Como Juquinha era o que morava mais longe, era o que mais tempo passava com ela, pois suas visitas duravam semanas inteiras.

E agora ele era o primeiro a receber as notícias e os presentes que ela certamente havia trazido em sua bagagem. Juquinha acomodou-se no banco de trás bem agarradinho na tia preferida. E o caminho de volta para casa foi rápido.

Vovó tinha já preparado uma mesa com coisas gostosas, e foi passar um café de coador bem quente enquanto Lúcia tomava um banho quente e colocava roupas limpas e confortáveis.

Juquinha ficou a folhear os livrinhos que a tia trouxera na bagagem de mão, para ir lendo durante o vôo. Eram todos em inglês, e ele só podia mesmo folhear, pois não entendia as palavras ali escritas. E Juquinha, que era um tantão preguiçoso na escola, começou a pensar seriamente em se dedicar a aprender línguas estrangeiras, pois estava vendo que precisaria delas para melhor aproveitar as viagens que pretendia fazer.

Lúcia desceu, sentaram-se todos à mesa e a longa conversa começou.

A moça havia ido a muitos lugares – estivera em Angkor, no Camboja, passara pela Tailândia, também na Ásia, onde vira os famosos templos budistas do Buda deitado e do Buda de jade, e também as belas praias do arquipélago Kho Pee Pee, que haviam sido destruídas pelo tsunami de 2004, e Juquinha havia visto alguma coisa a respeito na TV. E a tia fora também para a Nova Zelândia e para a Austrália, onde haviam cangurus – e Juquinha só queria mesmo saber dos cangurus.

Uma das boas coisas de se viver no século vinte e um é poder contar com a fantástica tecnologia dos computadores. Diariamente, vovô e vovó conferiam na internet se Lúcia havia postado fotos em sua página pessoal, e, quando Juquinha chegou, havia já para ele apreciar, alguns álbuns com nomes estranhos: Adelaide – Sydney – Angkor – Bangkok – Ko Pee Pee - Queenstonw – Fiordland e outros mais.

Para grande alegria de Juquinha, vovô selecionara para a tela de abertura do computador uma bela foto de uma mamãe canguru carregando seu filhotinho na bolsa.

Juquinha sentiu-se meio perdido com a conversa dos adultos, que falavam com familiaridade sobre locais que ele nem imaginava existirem. Quando a prima falou sobre Angkor, por exemplo, todos ali pareciam muito familiarizados com duas religiões das quais ele apenas reconhecia o nome – budismo e induísmo. E que dizer dos textos que para ele pareciam impronunciáveis? Mahabharata, Ramyana, Bhagavad Gita ...

Finalmente, a tia Lúcia levantou-se da mesa e anunciou que ia abrir as malas.

Primeiro ela retirou da mala uma bela toalha de seda para a mesa do vovó, uma camisa de seda para o vovô e um saquinho que entregou ao menino.

Juquinha imediatamente abriu o presente. De dentro do pacote caíram sete cangurus de madeira, de tamanhos diferentes, que se encaixavam uns nos outros de diferentes maneiras. Ele gritou de satisfação.

- Obrigada, titia. Obrigada.

A tia ainda retirou da bagagem de mão um pacote de deliciosos bombons para toda a família. A avó deu um ao Juquinha e colocou os outros na bomboneira de cristal sobre a mesa da sala.

Entretida com seus cangurus e com o bombom, Juquinha deixou de prestar atenção à conversa, até que a tia o chamou de novo:

- Veja os postais, querido.

Juquinha olhou assustado para os homens de cara pintada, de língua de fora, e mulheres com saias estranhas; aquilo não estava nos álbuns de fotos da internet. Eram fotos do povo maori.

A tia também mostrou a ele vários livros que trouxera consigo, livros sobre folclore, livros com lendas e histórias que ela prometeu que ia traduzir para ele, pois algumas eram bem interessantes.

E então ela descarregou sua câmera no computador e mostrou a todos pequenos filmes, com as danças que gravara na Nova Zelândia e no Camboja. E foi explicando que aqueles homens eram guerreiros maoris, ou pescadores cambojanos, que aquelas outras mulheres eram colhedoras de arroz, e as mais belas danças eram as exibidas nos casamentos e, antigamente, na corte do rei, pelas melhores bailarinas, chamadas Apsaras.

Eram danças estranhas, e, as músicas, muito diferentes das nossas.

E assim a noite chegou sem que se dessem conta. Mas, enfim, vovó e vovô mandaram Juquinha escovar os dentes e ir deitar.

Juquinha dormia no quarto de hóspedes, mas naquela noite não conseguia fechar os olhos, e não parava de fazer perguntas em cima de perguntas para a pobre tia. Ela estava fascinado com a estátua de quatro braços do deus Vishnu. Com as caretas maoris. E, é claro, com a Austrália.

- Conta mais sobre a Austrália, tia.

- Assim que eu entrei na Austrália, você sabe, o rapaz da imigração devolveu meu passaporte dizendo com um sorriso maroto: Viva seu sonho.

- Por que, tia?

- Porque a Austrália é a terra do sonho.

E a tia explicou:

- O povo aborígene diz que, antes de o mundo ser mundo, os deuses se reuniram em uma pedra mágica, a Uluru, para sonhar o mundo. E sonharam tudo o que existe, todos os bichos, e lugares, e gente, e estão sonhando até hoje, porque o sonho não tem passado nem presente nem futuro, o tempo do sonho é a eternidade. E cada um de nós é parte do sonho dos deuses.

Juquinha arregalou os olhos.

- Mas a tal Uluru não fica na Austrália? Então como é que os deuses puderam ir para lá se a Austrália inda não existia?

- Mistério – sussurrou a tia – como este mundo é um sonho, e nos sonhos, tudo é possível...

- Mas...

- Ah, eu quase que me esqueço, trouxe uma moeda para cada um de vocês. – e a tia procurou em sua carteira. Tirou de lá uma pequena moeda, onde estava desenhado um canguru diferente, pois era um desenho ao modo dos aborígenes. Bonita.

- Essa é uma moeda comemorativa, especial – explicou ela – consegui algumas, e, é claro, trouxe uma para cada um de vocês. E dei outras duas para duas crianças que conheci na viagem, para uma garota graciosa que conheci em Siem Reap e para um menino maori. E foi engraçado porque a menina cambojana disse que queria conhecer um lugar frio e o menino maori disse que queria conhecer uma terra bem quente.

- Se eu pudesse viver o meu sonho, eu ia conhecer estes lugares estranhos em que você esteve, mas com crianças como eu, é claro, porque só com adultos seria muito, muito chato. – o menino segurou a moeda nas mãos com cuidado, e a colocou na mesinha de cabeceira - Posso pegar esta moeda e fazer um desejo, como as pessoas fazem ao jogar moedas nas fontes? Pois eu quero conhecer as outras crinças que ganharam as outras moedas e brincar com elas e conhecer onde elas moram. Você acho que esta é uma moeda mágica, tia? Você acredita em objetos mágicos?

- Mágicos como os de circo? Claro que não, são truques.

- Não, não, mágicos como os objetos das histórias, você sabe, a toalha que o menino estende na mesa quando tem fome e então aparecem suas comidas prediletas, a pedra da gruta de Ali Babá, o anel que o herói leva no dedo para usar em um momento de perigo e chamar um gênio ou animal mágico.

- Ah, isso é diferente, você está falando de objetos de poder. – a tia pensou antes de responder. – Bem, em primeiro lugar você tem de merecer o objeto mágico. Em segundo lugar, só pode usar este objeto em extrema necessidade. Em terceiro lugar, a porta da gruta de Ali Babá está hoje em qualquer loja moderna, é uma questão de técnica.

- Então você quer dizer que a pessoa está falando de uma coisa que ela não conhece? Como os índios que chamaram o português de Caramuru porque não conheciam a pólvora?

- Sim, mas há mais do que isso. Objetos de poder nas historias de fadas são símbolos. Símbolos do que a pessoa merece. O objeto de poder mais interessante que eu conheço - e você poderá entender facilmente o que eu quero dizer - é a pena do Dumbo.

- Dumbo, o elefantinho voador? Bem... – Juquinha refletiu um pouco e disse – A pena não era exatamente um objeto mágico, porque o Dumbo sabia voar, só que não sabia que sabia, porque ele voava dormindo.

- Exato! –exclamou a tia – e todos os nossos heróis que recebem de suas fadas madrinhas objetos mágicos, estão, de certa forma, dormindo. Um objeto mágico apenas faz você perceber o seu próprio poder, algo que você já possui, que já adquiriu por méritos próprios e não percebeu. Neste caso, querido, sim, eu acredito em objetos mágicos.

Juquinha ficou pensando...objetos mágicos, objetos de poder...talentos que uma pessoa tem e não sabe que tem...que intrigante...

- Você disse que os heróis que recebem objetos mágicos estão dormindo, é porque eles fazem parte do tempo dos sonhos?

- Todos nós fazemos parte do tempo do sonho, querido, nós estamos sonhando uma linda vida, que os deuses sonharam para nós primeiro... – e, antes que o confuso garoto pudesse retrucar, ela acrescentou - E agora, meu querido, não tem mais desculpas para ficar acordado.

E a tia finalizou, muito séria:

- Viva o seu sonho.



Capítulo três
Primeiro sonho


bibligrrafia:
http://www.newzealand.com/
books:
Maori Legends – Alistair Campbell
Maori – Aotearoa New Zealand – Don Sinclair



Juquinha estava em um lugar muito úmido. À sua volta, tudo estava ainda muito escuro, havia poucas estrelas no céu e ele sentiu areia em suas mãos. Sentou-se. Percebeu a seu lado duas outras crianças, uma menina e um menino, que pareciam ter a mesma idade que ele.

- Quem são vocês? – ele perguntou.

- Tomika – respondeu o garoto, embrulhado em uma capa de penas.

- Chim – disse a garota, tremula, enrolada em um belo tecido de seda estampado.

Então uma figura alta sussurrou perto deles:

- Vamos, agora. Sigam-me. – Juquinha correu atrás de quem assim falava, um belo moço, de corpo atlético e pernas ágeis, que ajudou as crianças a pularem para dentro da enorme canoa e a sentarem-se bem quietas nos últimos bancos.

- Fiquem aqui, meus irmãos não podem ver vocês,porque vocês vieram do futuro, mas podem ver a mim, por isso vou ficar escondido até chegar a minha hora. – Assim falando, ele escorregou para o lado do mar, agarrando-se ao casco da embarcação.

- Espere um pouco – chamou Juquinha – quem é você?

- Maui.

O céu começava a clarear e ruídos de passos correndo na areia fizeram o garoto silenciar.

Quatro rapazes, fortes e ágeis, saltaram para dentro da canoa e começaram a remar vigorosamente para o mar aberto.

- É ótimo que Maui tenha ficado em casa dormindo, assim podemos ter um pouco de glória – disse um deles.

- Maui é esperto e valente, já o vimos pegar uma baleia pelo rabo e fazê-la girar no ar – comentou outro – mas nunca deixa nenhuma oportunidade para nós mostrarmos nossos próprios méritos.

- Eu não me importaria muito com o fato de ele ser maior e mais forte, se não fizesse toda sorte de brincadeiras idiotas conosco – desabafou outro.

- Está um dia lindo para pescar, irmãos – disse outro – vamos nos concentrar nos ventos e nas ondas do oceano.

Juquinha olhou para trás. Os rapazes remavam tão rápido que já quase não se viam o contorno da praia de onde haviam saído.

No horizonte, uma faixa carmim derramava-se pelo oceano em direção à canoa, e por todos os lados a água agitada ganhava tons prateados. Tudo parecia brilhar mais a cada momento, enquanto nuvens amarelas e douradas espreguiçavam-se pelo céu. O próprio ar parecia brilhar, e a bisa gelada começava a ficar mais agradável, não exatamente quente, porém menos cortante.

A canoa seguia deslizando por sobre as ondas, veloz, ao ritmo cadenciado dos remos. A cada remada, gotículas de água salgada e fria caíam nos rostos dos remadores e das crianças.

- Eu queria conhecer um país frio – sussurrou a garota – esse foi o meu desejo, conhecer um país bem diferente de onde moro, onde é muito, muito quente. E muito pobre, também.

Juquinha perguntou de onde ela viera e ela respondeu que vinha do Camboja.

Juquinha observou os remadores de faces ferozes a mexerem seus corpos na cadência das remadas. Eles haviam prendido seus longos cabelos pretos com fitas coloridas e pintado o rosto todo com linhas pretas. Isso fazia com que eles não parecessem humanos.

De quando em vez, uma marola levantava o barco acima da linha d’água e a canoa caía com grande estrondo no mar, recebendo jatos de água salgada em seu interior.

Afastavam-se cada vez mais longe, e nada de peixes – assim diziam os rapazes, que olhavam para as águas com atenção. Nem baleias nem pesca miúda.

O sol foi-se levantando no horizonte até estar exatamente no meio do céu, a sede fazia a garganta de Juquinha doer, e seu estômago roncou alto.

Tomika tirou um pouco de água do fundo de um reservatório debaixo de um dos bancos da canoa e ofereceu água para Chim e Juquinha. Depois pegou um pouco de peixe salgado que estava a um canto e repartiu com eles.

A água estava fresca e boa, e o peixe tinha cheiro forte. Juquinha jamais comeria aquilo se não estivesse com muita, muita fome.

- Não se preocupem, não seremos descobertos – falou Tomika – Maui disse que não podemos ser vistos por eles.

- Você conhece Maui? Quem é ele? – perguntou Chim.

- É o grande herói do meu povo – explicou Tomika.

Neste momento uma grande agitação começou entre os irmãos.

- Já visitamos todos os locais de pesca que conhecemos e em nenhum tivemos sorte – disse um deles – Vamos voltar.

Os outros resistiam, e insistiam em ir mais além. Tomaram água e comeram o que restara do peixe, e então continuaram mais adiante. A tarde estava a cair quando enfim todos concordaram em voltar.

O sol já não aquecia mais a pele e a brisa amena dera lugar a um vento cortante e seco.

Neste momento Maui apareceu.

- Bem, irmãos, já que não pescaram nada sozinhos, deixem-me tentar.

Os irmãos ficaram muito bravos por Maui ter ficado escondido na canoa.

- Fiquei escondido – disse ele – e não fiz nenhum truque para prejudicar a pescaria. Foi apenas falta de sorte, mas comigo será diferente.

Maui pegou seu anzol de osso encantado e o jogou bem longe. Os irmãos fizeram o mesmo. Quase no mesmo momento em que tocaram a água, as linhas começaram a puxar e cada irmão pescou um belo peixe. Apenas a linha de Maui continuava esticada e tensa.

Tomika estava excitado e batia palmas.

- Puxa, puxa, Maui! – gritava Tomika..

Maui puxou, e uma enorme superfície de terra apareceu no oceano, na ponta de anzol de Maui.

- É Aotearoa – gritava Tomika – Aotearoa!

Maui desvencilhou a enorme ilha de seu anzol, pegou as crianças em seus braços que ficavam cada vez maiores e disse a elas que se sentassem em suas mãos.

Maui estava crescendo, crescendo, e em suas mãos enormes as crianças se acomodaram e viram, lá embaixo, não uma, e sim três ilhas:

- Esta é a ilha que eu pesquei agora, aquela é a nossa canoa e a menorzinha ali é a âncora que esta segurando a canoa.

Tomika explicou aos outros que o nome da ilha norte é Te Ika a Maui que significa o peixe de Maui, a ilha sul é conhecida como a canoa de Maui, ou Waka a Māui e a pequena ilha Stewart, próxima ao fim da ilha sul, é a ancora ou Te Punga a Maui.

- E agora – continuou Maui - vocês vão viajar nas primeiras canoas ancestrais. – Maui piscou para Tomika, que suspirava de emoção, e ficou de novo pequenino, e no meio do oceano colocou as crianças atrás de uma de duas canoas imensas, que se aproximavam das praias.

- Tomika, você sabe o que está acontecendo? – perguntou Juquinha.

- Sim, claro – falou o menino. – Maui é o herói que nasceu homem e ganhou a imortalidade, fazia muitas coisas mágicas, como pescar a ilha norte, como acabamos de ver. Não havia ninguém nestas ilhas até que chegaram aqui as canoas ancestrais.

- Que canoas são estas? – Chim arregalou os olhos.

- Meu povo descende de povos de outras ilhas, ilhas cheias de verde, de frutas boas e peixes a fartar, ali todos viviam uma vida longa e feliz, e, como as ilhas eram pequenas, de vez em quando ficava lotada e os mais jovens então partiam em procura de outras ilhas para construir seus lares. Bem, certa vez, duas canoas com jovens casais saíram pelo oceano e viajaram para tão longe, que chegaram aqui, onde as ilhas são grandes o bastante para que ninguém precise sair delas e assim estamos todos aqui até hoje.

Juquinha olhou para os ocupantes da canoa. Havia bem mais de quarenta pessoas em cada uma delas, entre moças e rapazes, nenhuma criança, nenhum idoso, só gente forte e corajosa, remando persistentemente nas ondas bravias, parecendo cansados, muito cansados. Quanto tempo havia que já estavam remando?

- Olhem – gritou um dos moços – Terra!

Foi como injetar ânimo novo nos remadores. Começaram a cantar e a movimentar-se velozmente, ao aproximarem-se da praia saltaram das canoas, nadaram, mergulharam, empurravam as canoas para terra, falavam, riam, tudo ao mesmo tempo, uma alegria só.

Juquinha e as crianças começaram a correr em volta do grupo, também. Maui apareceu e correu com elas por toda parte, com seus passos mágicos que levaram as crianças ao mesmo tempo a diferentes lugares.

Maui correu com as crianças em volta de lagoas azuis, de praias rochosas, de penhascos e promontórios repletos de focas e leões marinhos, de vulcões ativos, de geisers fumegantes, de baías onde passeavam pequenos pingüins, e por entre enormes pinheiros de pinhas minúsculas, e por entre arbustos estranhos que Juquinha nunca havia visto, por onde passeavam pássaros que não sabiam voar.

- São as moas – explicou Maui – hoje estes pássaros já não existem mais. Foram o alimento preferido dos primeiros maoris.

- Maoris? – Juquinha e Chim olharam para Maui, surpresos.

- Maoris – repetiu Maui – os primeiros homens que chegaram aqui. Seus ancestrais, Tomika.

Maui levou as crianças de volta à praia e tornou a desaparecer.

Os jovens, deitados na areia, cansados da travessia, conversavam animadamente.

Apesar de não entender a língua deles, Juquinha percebeu uma palavra que repetiam a toda hora, olhando para o céu.

À luz do sol poente, as nuvens alongavam-se de novo por toda parte, enquanto o manto azul da noite se erguia na outra ponta do céu.

- Aotearoa.

Tomika começou a pular. Todos os rapazes e moças levantaram-se da areia e começaram a cantar uma canção onde se repetia muitas e muitas vezes a palavra Aotearoa.

- O que é isso? – perguntou Chim baixinho no ouvido de Juquinha.

- Ah, isso eu sei responder – e o garoto sentiu-se orgulhoso. – Aotearoa quer dizer a terra das longas nuvens brancas. É o nome que este povo deu para a Nova Zelândia.





As crianças deitaram-se na areia, sonolentas, e ficaram a observar os primeiros maoris em sua primeira noite na ilha.

Como ninguém podia vê-las, estavam à vontade para conversar e tocar em tudo.

Juquinha estava impressionado com as canoas longas, entalhadas em um único tronco de árvore, resistentes às surpresas do mar – tempestades, baleias, recifes, talvez até icebergs.

Finalmente, cansado, encostou-se aos amigos e todos adormeceram na areia.



Pela manhã, acordaram, e Tomika exclamou:

- Amigos, vamos até a minha aldeia. Ali está minha família.



- Eles não vão estranhar? – perguntou Juquinha, ainda meio tonto.

Ontem estava no passado, hoje estava de volta ao presente?

- Qual é, isto aqui é o paraíso dos turistas de todo o mundo, não sabia? Estamos acostumados com línguas estranhas e trajes esquisitos.

- Kia Ora – disseram alegres os parentes de Tomika, rodeando as crianças.

- Kia Ora – respondeu educadamente Juquinha, supondo que aquele devia ser o cumprimento semelhante ai nosso bom dia, e era mesmo.

Chim bocejou, esfregando o estômago.

- Venha, vamos comer algo. – e Tomika levou os amigos para sua casa, lembrando a eles que teriam de tirar os sapatos antes de entrar.

- Em minha terra também fazemos assim – disse Chim – a poeira da rua deve ficar na rua enquanto nossos lares permanecem limpos.

Um cheiro de vegetais e carne cozida estava no ar, e Juquinha logo percebeu que ia comer uma refeição quente, embora bem diferente da que estava acostumado pela manhã.

- Nós comemos fora de casa – explicou Tomika.

Juquinha pensou que deveria ser muito desagradável comer fora de casa no inverno.



Quando souberam que havia visitantes, os maoris resolveram dançar o powhiri para recepcionar as crianças. As mulheres usavam, na dança, uns objetos redondos semelhantes a bilboquês chamados poia, fazendo malabarismos interessantes com eles.

- E aí, gostou da dança deles? – perguntou Juquinha para Chim.

- É muito alegre e ingênua – respondeu a menina.

- Ingênua?

- Sim, a dança de vocês é muito espontânea e cheia de emoção, eu gostei. Na minha terra as danças são muito refinadas, eu mesma há anos faço aulas de danças porque pretendo dedicar minha vida à dança – e a garota abaixou os olhos, encabulada – Mas, é claro, meu povo tem milhares de anos e nosso império foi um dos maiores do mundo.

- Que império?

- O império Kmher.

- Nunca ouvi falar.

- É porque você é criança, o mundo é grande, e você inda tem muito o que aprender – sorriu a garota. – Mas você vai ver, quando chegar ao meu país. Vou levar você até lá.

Estou gostando deste sonho – pensou Juquinha.



- Eu não pensei que vinha a um país tão selvagem – comentou Chim.

- Aotearoa não é um país selvagem – protestou Tomika – Acontece que os maoris são o mais interessante do país, quero dizer, o resto são cidades civilizadas igual a qualquer outra parte.

- A aldeia global – comentou Juquinha.

- A língua maori é considerada patrimônio cultural e tenho o maior orgulho de fazer parte deste povo e manter suas tradições – disse o menino.

- Ah, eu não quis ofender – disse a menina – É um lindo país e eu vi as paisagens mais lindas de minha vida aqui. Estas pedras verdes, vulcões, todos estes animais marinhos, estas montanhas, é lindo de fazer a gente dançar e cantar, realmente. Mas, como é que os estrangeiros não expulsaram vocês, como eles fizeram em toda parte?

- Ah, porque nós somos maoris, é claro. – Tomika dançou a Haka, a dança de guerra, fazendo caretas horríveis e gestos ameaçadores, para impressionar os amigos. Mesmo sem ser tatuado, ele parecia assustador. - Nós somos bravos, valentes, ferozes, e lutamos pela nossa terra e fomos mais fortes que eles, até que desistiram e assinaram o tratado.

- Que Tratado?

- O Tratado de Waitangi, em 1840. Foi muito bonito. Os maoris pegaram suas armas e fizeram wero, o desafio, e os ingleses vieram com seus uniformes de gala, e todos reconheceram que somos todos um só povo: He Iwi Tahi Tatou. Temos a posse das terras, e a partir de então somos todos neozelandeses, brancos e maoris.

- He Iwi Tahi Tatou – repetiu Juquinha, sonhadoramente. Quem sabe no futuro o planeta inteiro pudesse assinar um tratado em que todos fossem um só povo...



Capítulo quatro
Segundo sonho



Na manhã seguinte, Juquinha acordou com muito calor. Gotas de suor escorriam por sua testa aos primeiros raios matinais. A seu lado, Tomika arregalava os olhos:

- Nossa! Eu queria conhecer uma terra bem diferente da minha, um império de guerreiros que morassem em um lugar bem quentinho, para variar, mas isto aqui... é enorme!

Em frente aos meninos, via-se um espaço imenso onde construções de pedra refletiam-se nas águas de um grande lago. Ao contrário dos lagos da Nova Zelândia, no entanto, este estava rodeado pela selva.

- Esta é minha cidade – falou Chim – Estamos em Siem Reap e o que estão vendo ali à frente é Angkor.

A menina trouxe para eles dois cocos e algumas frutas. Os meninos beberam vagarosamente a água doce, pelo canudinho, e comeram as frutas frescas.

Juquinha observou Chim. A garota tinha um rosto meigo, de feições delicadas, e seu corpo parecia frágil e ágil. Seus enormes olhos negros sorriram para ele.

- Tomika me mostrou um pouco do povo dele, eu vou mostrar um pouco do meu, e aí onde você vai nos levar, Juquinha?

Juquinha ficou pensando. Havia tanta coisa bonita no Brasil...Mas, se ela gostava de dança, ele tinha de levar a garota ao Rio de Janeiro para ver o desfile das escolas de samba! Embora preferisse levá-la para Gramado, no Rio Grande do Sul, seu rincão preferido, para comer chocolates e ver a paisagem bonita da serra da Estrela.

Quando acabaram de comer, Tomika falou:

- Então este era o tal império Khmer do qual você nos falou.

- Aqui a gente vai andar de tuc-tuc – disse a menina – afinal, são cerca de 30 km e o sol aqui é de derreter pedras.

- Foi ali pelos séculos nove e quatorze que os guerreiros do império khmer dominaram esta parte da Ásia – explicou Chim – Eles eram ferozes, também, e valentes. Os reis mais famosos deles foram Suryavarman II , que construiu o templo de Angkor e Jayavarman VII, que foi bom para o povo e construiu escolas e hospitais. Eles vieram da Índia, onde a religião dominante era o hinduísmo, e, por certo tempo, houve alguns reis budistas, então as histórias esculpidas nas pedras vão contar a vocês todo o Mahabharata e vocês vão ver também muitas imagens do Buda Sakyamuni. E há um lugar muito especial aqui que se chama portal dos elefantes, vocês vão gostar de ver este animais enormes e mansos, pela manhã alguns turistas chegam pelo portal e tiram fotos montados nos elefantes. É um bom lugar para a gente começar nosso passeio.

Depois de verem os elefantes, e até montarem em um deles, as crianças entraram no templo principal e Tomika pergunrou para Chim o que barata era aquela.

- O Mahabharata é um livro onde estão as principais histórias da Índia. Tem fatos históricos, costumes, tradições, mitos, tudo sobre os deuses do hinduísmo. As principais histórias do Mahabharata estão esculpidas nas paredes dos templos de Angkor.



Chim mostrou aos meninos a famosa batalha entre Pandavas e Kauravas., hoje comprovada historicamente.

Em outro painel, uma outra batalha famosa, entre o príncipe Rama e o demônio Ravana.



- Tudo bem - disse Tomika - mas a gente não está na Índia. Estas batalhas aconteceram na Índia, não foi? O que tem a ver com o seu país?

- Da Índia partiram muitos povos, entre eles o povo khmer, que veio para cá, para o Camboja – explicou Chim – e trouxeram os mesmos costumes e tradições.



O painel de que Juquinha mais gostou mostrava, na parte de baixo, minúsculos peixinhos, e, na de cima, figuras de mulheres dançando. Eram as apsaras, dançarinas celestes. E Chim contou aos meninos a história do batimento do oceano de leite. Foi mostrando na pedra e contando:



- Aqui, no centro, é o monte Mandara. Enrolada no monte, está a serpente Vasuki, que se ofereceu para servir de corda, enrolada no monte, e, de cada lado, espíritos bons e maus agarram-se na cobra e puxam para fazer o monte bater o oceano. Os espíritos bons são os devas e os maus são os asuras. O monte Mandara está apoiado sobre as costas de uma tartaruga gigante, Kurma, que é uma das formas do deus Vishnu. Kurma, lá embaixo, vai girando o monte e batendo suas patas, e assim, faz com que o leite se transforme em manteiga, e um monte de coisas vai sair deste oceano, inclusive as apsaras.



- Para que eles estão batendo o oceano?

- Isso aconteceu depois de um dilúvio, não havia nada mais, e, para recriar o mundo, o deus Vishnu, que dormia debaixo do oceano, tinha de acordar e pegar o elixir da imortalidade para fortalecer os deuses.

- Um dilúvio? Interessante, e por que os deuses estavam fracos?





- É, vocês sabem, há muitos mundos, e eles acabam e começam de novo, e a cada ciclo, Vishnu acorda e recria o mundo que acabou.

- Os cientistas tem um nome para esta teoria, um tal de Big Bang – falou Juquinha.

Tomika apenas comentou:

- Muitos mundos, é? Que coisa estranha.



- Bem, naquela época, Indra ofendeu um dos sábios que ajudam os deuses a criar o mundo, e este sábio tirou o vigor dos deuses. Então Indra precisava pegar do fundo do oceano o elixir da imortalidade, o Amrita, a bebida sagrada. Por isto ele acordou Vishnu e chamou devas e asuras.



- E eles conseguiram o tal elixir?

- Sim, conseguiram. Enquanto iam batendo o oceano, iam aparecendo coisas, as apsaras, a vaca, o cavalo, o deus da medicina, a deusa da prosperidade Lakshmi, o deus da medicina com a urna que continha o preciosos elixir.

- Ah, mas os demônios devem ter tentado ficar com tudo. – opinou Tomika.

- Sim, tentaram, e aí o deus Vishnu se transformou em uma bela jovem, Mohini, e se ofereceu para distribuir a bebida, e convenceu os asuras a esperarem na fila – claro que ele não pretendia dar nada aos asuras.

- E aí...

- Um dos asuras mais espertos, um tal de Rahu, se disfarçou de deva e conseguiu tomar um pouquinho, mas o sol e a lua, lá do alto, viram tudo e avisaram Vishnu. Vishnu cortou a cabeça dele, e, como Rahu já havia bebido, a cabeça inda existe até hoje, e é ele quem como o sol e a lua de vez em quando provocando os oclipses, mas como ele não tem barriga, a lua e o sol escapam outra vez.

Os meninos riram.

- Que engenhoso!

- Também dizem que um veneno surgiu do oceano, ameaçando a todos, e que o deus Shiva tomou o veneno e ficou com a garganta azul; é o senhor da vida e da morte, é o devorador do tempo, rege o nascimento e a destruição.



Os meninos andaram o dia todo pelos diversos edifícios de Angkor. Viram os macacos da floresta passeando em meio ás pedras, enormes árvores infiltradas em uma das construções, que foi deixada intacta, para que todos pudessem ver a selva retomando seu território, e admiraram as esculturas de leões recuperadas por artistas modernas que trabalham na preservação de Angkor, e admiraram as grandes cabeças de pedra ao por do sol.



O calor era intenso, e Tomika estava se sentindo mole, mesmo depois de beber água de coco de montão.

- A gente vai jantar, e vocês vão me ver dançando – disse a garota.

Voltaram para a cidade de tuc-tuc, no transito mais caótico que Juquinha já vira na vida – motos, biciletas, carros, gente a pé, todo mundo se cruza ao mesmo tempo, e, como todos andam devagar, ninguém se atropela.

Chim colocou os amigos sentados em uma mesa na primeira fila do rnome do restaurante.

Falou a eles para comerem antes de as danças começarem, era só pegar o prato e pegar o que quisessem nas mesas do fundo. Ela ia encontrar seu grupo de dança.

Os garotos, meio tímidos, se aproximaram. Havia de tudo: saladas, frutos do mar, carne, frango, legumes, doces estranhos e frutas esquisitas.

Uma das frutas, conhecida como fruta dragão, tinha polpa branca com sementes pretas; um dos doces era feito de folhas de chá.

Tomika escolheu peixe e frutas; já Juquinha, curioso, pegou várias comidas diferentes e gostou de tudo. Comeu só um pouquinho de cada coisa, para não ficar doente, pois não era guloso.

Quando as danças começaram, Juquinha ficou encantado com a amiga. Que graciosa!

- Ela é bonita – comentou Tomika – a dança deles é meio sem vida, mas elegante. É como Chim disse, refinada, sem espontaneidade.

Juquinha abriu a boca, espantado. Sem vida? Então entendeu que Tomika estava com ciúme.

Os meninos imaginaram que estavam no palácio do rei Jayavarman VII,, nos tempos áureos de Angkor, em um banquete cheio de deliciosas iguarias, admirando as apsaras.

E como eles estavam mesmo comendo deliciosas iguarias e admirando apsaras, e haviam visto o trabalho de restauração de alguns templos, foi fácil imaginar o resto.



Capítulo cinco
O terceiro sonho


O gostoso de dormir em sítio é dormir a sinfonia dos grilos e acordar com a passarada o ano todo e com as cigarras, na primavera e no verão.

A gente acorda descansada, mesmo porque consegue dormir no escuro, e no escuro, dorme-se um sono profundo.

Lúcia, depois de 23 horas de viagem a favor do sol, com as refeições ao contrário do relógio biológico, abriu os olhos, sem certeza de ainda estar acordada.

Havia tido um sonho tumultuado, onde o sobrinho Juquinha a arrastara ao Rio de Janeiro com Tomika e Chim, e todos foram ao sambódromo assistir ao desfile das escolas de samba campeãs, em plena terça-feira gorda...

Lúcia encontrou a família no café da manhã, e, para seu espanto, Juquinha contou um estranho e longo sonho, na última parte do qual, ela, Lúcia, havia acompanhado as crianças ao Rio de Janeiro!

Juquinha apertou a moeda australiana entre os dedos:

- Tia, esta moeda é mágica.

- Mágica é a sua imaginação – disse o avô, mas Lúcia permaneceu quieta, lembrando-se do incrível sonho.

Voltaram todos para a sala, onde os avós continuaram a folhear os livros e postais, a observar os filmes e fotos, e a conversar sobre a viagem da filha. Juquinha ouvia tudo com atenção, entretido com seus cangurus de madeira.

- Ontem você se estendeu sobre os maoris e sobre Angkor. Hoje você vai nos contar mais sobre a Austrália. – pediu a avó. – Você não visitou o museu de Antropologia de Sydney, como eu recomendei?

- Sim – disse Lúcia – Trouxe uma porção de fotos de material que eu nunca colocaria na página pessoal para mostrar a vocês, e tenho uma malinha de coisas aborígenes, ainda fechada, lá no meu quarto, com coisinhas muito especiais para certos professores de história comparada que eu conheço...

Neste instante, o telefone tocou.

Juquinha ficou boquiaberto a ver a facilidade com que a tia se comunicava em inglês. Ah, ele também tinha de aprender inglês algum dia. E possivelmente outras línguas, também. Ele passeou os olhos pelos porta-retratos espalhados pela sala. Em um deles a tia estava entre alguns índios. Depois de sua formatura, quando Juquinha ainda usava fraldas, Lúcia passara um ano inteirinho morando em Roraima, em uma reserva indígena. Com certeza ela aprendera um bocadinho da língua dos índios.

Quando Lúcia desligou o telefone, havia em seus olhos um brilho encantador.

- Pai, mãe, sabem quem acaba de ligar? O Dr. Howard, diretor do museu de antropologia de Sydney.

- É mesmo? O que ele disse?

- Eu fiquei muitos dias com ele, em Sydney. E ele me comunicou que está organizando uma viagem ao Brasil, quer vir ao parque nacional do Xingu e à reserva dos ianomâmis em Roraima. Ele me convidou para fazer parte da equipe e servir de guia e intérprete para eles. Claro que eu disse sim!

Na próxima meia hora não se falou de outra coisa. A tia estava animadíssima com a oportunidade. E os avós também.

Quando a conversa dos adultos fez uma pausa, Juquinha se arriscou a perguntar:

- Tia, este tal diretor que vem para o Brasil é ... bonito? ... e solteiro, também?

- É, sim. - A tia respondeu sorrindo, com os olhos perdidos em suas lembranças.

Juquinha levantou-se, deu um forte abraço na tia, sussurrando em seus ouvidos:

- Viva seu sonho.



domingo, setembro 04, 2011

intertextualidade bem humorada

Herança


Vem de Santos
Este trauma de se agasalhar
Este costume de carregar sempre um guarda-chuva na bolsa.
É hábito bem santista
O caminhar admirando a paisagem.
O gosto da água de coco,
O cheiro de maresia e
As roupas descontraídas
São outras tantas coisas de santista.
De Santos vem o jeito esportivo,
A nostalgia pela beleza dos cartões postais,
O desejo de viajar pelo mundo em cruzeiros luxuosos
E a preguiça que imobiliza o corpo à sombra copada de um chapéu-de-sol.
O orgulho de fazer parte da História do Brasil
É parte integrante de mim.
Bem como a sensação de estar à parte do mundo.
Há sempre em minha casa este clima de férias perenes,
Mesmo que Santos seja hoje só um quadro na parede.

terça-feira, julho 12, 2011

UM PEIXE NO POMAR

- Bebedouro ? Nunca ouvi falar nesssa cidade.

- Como não ? É a capital da laranja.

- E como é que você foi trocar nossas praias pelos laranjais ?

- Lá tem emprego, coisa que aqui no Rio anda difícil.

Fiquei pensando nas palavras de minha amiga. Visitei - a nas férias. E no ano seguinte, eu também estava em Bebedouro.

Deixei a insegurança das ruas, o medo dos assaltos e o trânsito enlouquecedor para trás. Troquei o apartamento, grades, trancas e chaves, por uma casinha com jardim e quintal.

Mantive o mesmo emprego, porém, que diferença no padrão de vida! Que saudável sossego!

Logo na primeir semana fui à secretaria do clube .

- Quero comprar um título.

- Mas eu não sei quem a senhora é.

- Não pode ao menos informar o preço ?

- No momento não temos títulos à venda.

Mas no dia seguinte, meu vizinho bebedourense acompanhou - me ao clube, apresentou - me e apareceu um título disponível para a amiga do Geraldo.

Aonde quer que eu fosse, sentia - me estrangeira.

- A senhora é de Bebedouro ?

- Não.

- Logo vi. Não a conheço.

O sorriso congelava na face e eu podia quase tocar o muro de polida indiferença que se erguia à minha frente.

Até que aprendi com uma amiga a contar uma mentirinha.

- A senhora é de Bebedouro ?

- Nascida e criada.

- Como não a conheço ?

- É que saí para estudar fora.

- Ah!

Mas era um ah! cheio de simpatia!

Logo fui - me infiltrando aqui e ali e em breve tinha um bom círculo de relações. Só me faltava mesmo um namorado.

- Você veio para a cidade errada - dizia a minha amiga carioca - Aqui não se arranja ninguém.

Havia um solteiro em meu emprego, mas, definitivamente, nada tínhamos a ver um com o outro. E um vizinho, francamente hostil a minhas tentativas de aproximação.

Comecei a sair. Para descobrir que a noite é dos pivetes e dos mal casados.

Perguntei para as comprometidas como haviam conhecido seus maridos e namorados e obtive dois tipos de respostas :

- Estudamos juntos.

- Alguém nos apresentou.

É isto ! Em uma cidade de valores tão tradicionais é preciso ser apresentada. E saí à cata de uma apresentação junto às pessoas mais chegadas.

- Afinal, eu preciso conhecer alguém de acordo.

As pessoas colaboraram. E fui apresentada a irmãos, primos, cunhados e amigos de família.

. Eu não entrosava com ninguém.

- É impossível ! Você esqueceu como namorar !

- Não é isso. É que não há afinidades.

Aí alguém lembrou de um astrólogo que analisava a personalidade das pessoas por computador.

- Se ele não for capaz de arrumar um companheiro para você, ninguém pode.

E assim, em uma bela tarde de sábado, recebi das mãos do tal astrólogo uma lista com três datas.

- O marido ideal para você nasceu em um desses três dias.

- Só ?

Também não precisava ser tão ideal assim...

- Seu caso é muito especial. - essas foram as exatas palavras dele - Se nós excluirmos os casados, os não brancos , os pobres, as crianças e os velhos, você tem uma chance em dezoito mil de encontrar um homem afim com você.

E ante o meu olhar de espanto, ele completou :

- Quase impossível. Por que você não procura no cartório ? Diga que eu pedi.

E assim, lá fui eu ao cartório. Voltei com dez nomes.

- Este mudou - se. Este casou. Este morreu. Este...

Esgotou -se a lista. Nenhum disponível.

Desanimador!

Não desisti, porém, de procurar. E certa manhã, no lago, passou por mim um exemplar masculino da idade certa, atraente e charmoso. Passamos do sorriso ao diálogo e encontrei - me acompanhada de um espécime SOLTEIRO !

Uma chance em dezoito mil e eu fui encontrar o meu homem justamente em Bebedouro! A cidade realmente foi generosa comigo, reservando especialmente para mim um simpático e disponível bebedourense!

Era bom demais para ser verdade!

Você já adivinhou a verdade ?

Aposto que não.

Ele também é carioca.

domingo, junho 05, 2011

O coral municipal Maestro Pedro Pellegrinho

(cidade: Bebedouro / SP)

Era um coral muito antigo,
Quase – ou mais – de quarenta anos,
Formado pelo grupo distinto e seleto de senhoras com ‘postura e compostura’, como dizia a Zélia.
Tinham sido alunos e alunas do ‘Maestro’,
A quem chamavam, com carinho, de seu Pedrinho,
Já falecido mas não esquecido.
Havia a Dinorah, de cabelos brancos como flocos de neve,
Anita, viúva famosa pelos seus méritos e pelos seus doces,
Dona Lady, a esposa do pastor, dama de fino trato,
E a Cida, que era só sorrisos e tão carinhosa que só chamava o marido de ‘Benhê’.
Após tantos anos, ninguém mais se lembrava do sobrenome deles – eram a Cida e o Jorge Benhê.
Havia outro casal, o Hélio e a Neuza, de voz tão linda mas tão tímida que nunca conseguia fazer um solo, pois ficava afônica de emoção.

Os baixos de nomes sonoros: Beraldo, Edésio, Durvail,
Casavam suas vozes roucas com as sopranos agudíssimas e afiadíssimas:
a Nilza, que cantava dançando,
A Lourdes, de porte distinto,
E a Luíta, de talhe elegante.

Vera, senhora de sociedade,
Sempre alegre e bom humorada,
E tão rica de dinheiro e de simpatia,
Nos dias frios trazia café,
E a Zélia fazia um panelão de pipocas.

Quando comecei a cantar no coral,
Embora beirasse os quarenta, chamavam-me de menina, pois, diziam, eram o coral sexy, de sexagenários.
Mentira! Éramos o coral sexy porque na alma éramos todos adolescentes, e cantar remoçava nossos corações.

Espalhamos alegria pela cidade
E foi tanto o encanto do nosso canto que encantou gente de todo canto e o coral cresceu.

Vieram os primeiros jovens:
o Zé Carlos, que tocava violão, imitava o regente e contava piadinhas, com seu amigo Marcos.
e o Edmilson, que, do seu jeito casmurro, cantava as frases mais engraçadas do contraponto,
E a platéia, pega desprevenida, sorria...

Saía regente, entrava regente,
o amor pela música não se alterava,
E o coral evoluiu e cresceu;
Ganhou repertório lírico e ambiente familiar:
pais, mães e filhos adolescentes, todos cantando juntos.
Hoje há nele gente de todos os credos, todas as raças, todas as classes e idades.

O coral já cantou acompanhado de orquestra sinfônica,
gravou disco,
Apareceu em televisão em programa de domingo, transmissão nacional,
Ganhou até concurso.

Eu fiquei toda arrepiada, quando a Dinorah exclamou, neste momento de triunfo:
“Ah, o seu Pedrinho! Se ele estivesse aqui conosco!”
Lembro das fotos antigas que um dia me mostraram,
Dos primeiros coralistas, muitos dos quais eu nem conheci, pois tantos já morreram, e penso:
“Mas, sim, seu Pedrinho está aqui conosco!”
e vejo com os olhos d’alma o querido maestro, de olhos risonhos, a reger, com entusiasmo,
Seu coro de anjos no céu.

domingo, janeiro 02, 2011

Hermann Hesse: uma história de amor à primeira palavra

Apaixonei-me por Hermann Hesse aos quinze anos de idade, ao abrir por acaso um de seus livros e deparar com as palavras:
Teatro mágico – só para loucos.
Comprei o livro, que devorei ansiosa, para descobrir que o tal teatro mágico, dentro do qual o personagem senta-se diante de um tabuleiro de xadrez para elaborar sua própria vida. O título era O Lobo da Estepe, e, na época, eu também era uma loba solitária, a uivar incompreendida pela vida. (por que será que, na adolescência, temos esta incrível necessidade de sermos rebeldes incompreendidos?)
Hermann Hesse influenciou profundamente meu pensamento adolescente. Copiei e colei na porta de meu quarto o poema chinês que ele colocou à entrada de sua casa, clamando por solidão e por paz, pois, em minha adolescência, eu tinha oitenta anos. (hoje tenho quinze, quem desse que a idade da alma á cronológica?)
Em meio ao sofrimento do pós-guerra, este alemão revela a esperança do gesto solidário, esperança que brota de nossa própria atitude interior de tolerância e aceitação do outro, da vida.
Homem que muito sofreu, adquiriu sabedoria, pois o sofrimento é alquímico: a dor é a pedra filosofal que transmuta o barro da ignorância no ouro da espiritualidade.
Hesse foi um buscador e vários de seus livros são de cunho autobiográfico, mas daquela biografia interior, narrando as peripécias da alma em sua busca por um sentido.
‘Esta foi a história de minha mocidade. Quando a relembro, parece-me que foi breve, curta como uma noite de verão. Um pouco de música, um pouco de amor, um pouco de vaidade – mas foi bela, generosa e colorida como uma festa do Elêusis. E apagou-se, rápida e miseravelmente como uma vela ao vento.’
É Peter Carmezind que mais me toca, a história do homem simples, obscuro, que não sabe expressar-se por palavras e contudo é cruelmente dilacerado pelo instinto da beleza, pelas emoções que ele não consegue ( e deseja desesperadamente) transmitir:
‘Que significado tivera minha vida e por que tantas alegrias e tantas dores haviam pesado sobre mim? Por que tivera eu a sede do verdadeiro e do belo, quando continuava ainda sequioso?... E por que motivo Deus, cujos desígnios não compreendemos, colocara dentro de meu coração aquela ânsia abrasadora de amor, já que ele me destinara a uma vida de homem solitário e pouco amado?’
Uma leitura complexa, enriquecedora.
Experimente.

Quem escreve?

Alguns escritores bem comportados e politicamente corretos conseguem escrever por encomenda, enquadrando-se nas regras do mercado e na pauta do público, vendáveis e previsíveis textos.
Por outro lado, há escritores malditos, que são escritos por seus próprios textos, que ouvem vozes interiores, que alternam períodos de febril atividade com outros de apatia total, que escrevem coisas inadequadas e revolucionárias, incomodam, transformam e profetizam paradigmas, vislumbram mistérios, constroem ou derrubam impérios.
Sócrates, o filósofo, tinha lá o seu demônio interior. A palavra daemon, naquele época, tinha mais o sentido de gênio,não sendo considerado nem bom nem ruim; o daemon é a chama totalmente neutra, que tanto pode clarear o caminho quanto iniciar um incêndio.
Também tenho um daemon, uma chama acolhedora, que, criatura gananciosa que sou, espero que um dia seja minha pira. Por enquanto, a velinha ainda cintila tímida.
A idéia está lá, e é boa.
Começo pelo final, que é o objetivo principal de toda história: surpreender o leitor, provocá-lo.
Uma história pode começar por vários pontos. O enredo pode percorrer caminhos variados. Cada estilo valoriza, destaca ou minimiza diferentes conotações.
Há personagens que copiamos da vida, outros há que se impõem e vão falando e acontecendo à revelia do autor.
Histórias paralelas e acessórias, distribuídas sabiamente pelos capítulos, enriquecem a trama, levando o leitor a vaguear por temas paralelos previamente relacionados.
E então, o livro estando pronto, eis que o autor se surpreende. A idéia, que está lá, e é boa, funciona como pano de fundo para uma outra coisa, esta sim, o verdadeiro enredo, que se escreveu nas sombras.
O autor se descobre mero instrumento e humildemente se rende ao verdadeiro desconhecido autor de sua própria obra.

Um garota de juízo

A religião não permitia, dizia ela, pois, antes de casar, era ‘pecado’.
Ele esperava.
Alem disso, dizia ela, devia obedecer aos pais.
Ele esperava.
No começo do namoro ela dizia que não podia por ser de menor idade.
Ele esperava.
Depois dos dezoito ela mudou o discurso: não tinha independência econômica.
Ele, apaixonado, esperava.
Ela divagava: não estava pronta, não era a hora certa...
Ele esperava.
Há que se ter controle sobre as emoções, explicava ela, e não comportar-se como uma maluca.
Ele esperava.
Ela bem que o julgava digno de seu amor, um homem íntegro, atencioso, trabalhador, gentil.
Um dia, surgiu o Outro: mundano, boa prosa, risonho, casado, promíscuo, fascinante, olhos azuis e irresistível sorriso sedutor.
Ela sentiu o desejo que irrompeu como um furacão, doido, urgente, e correu alucinada pela noite, indefesa, rendida, usando os últimos resquícios de sanidade que lhe restavam para atirar-se, em um frenesi, nos braços dEle, que, sem entender nada, ficou, no entanto, imensamente feliz.

O que é o amor, afinal?

Quando se esbarraram em uma esquina da vida, ela pensou ter agarrado seu homem.
A princípio ela achou divertidas certas atitudes extravagante da parte dele, que ligava só para ouvir a voz dela ou para dizer boa-noite. Ele adorava telefone (ela detestava!)
Ele a levava a teatros e concertos, durante os quais, alheio aos olhares furiosos das pessoas ao redor, ele falava sem cessar, como se sentisse uma compulsão em transformar seus pensamentos em comentários.
Enquanto ele declamava sua paixão em versos, ou em inflamados discursos amorosos, ela, que preferia a silenciosa comunhão com o universo, sentia-se cada vez mais frustrada, buscando em vão abraços, carícias e afagos, decepcionada por não haver resposta a seus cúmplices apertos de mão.
A incompatibilidade era profunda, visceral.
O amor, para ele surgira ao primeiro som, para ela ao primeiro toque.

Ritual - crônica

Ela desistira de fabricar aquela onda inexistente em seus cabelos. Inútil. Lá no íntimo sentia a mesma tristeza.
A espera. Parecia-lhe que toda sua vida fora sempre uma espera, uma expectativa de algo que cada vez afastava-se mais: quando eu fizer quinze anos, quando eu entrar na faculdade, quando eu me formar, quando, quando... meu Deus, quando iria sentir, enfim, que a vida lhe pertencia?
Repetia-se a mesma agonia de todos os anos. Desenrolava-se o filminho de seus atos nos últimos 365 dias, projetando-se em uma velocidade estonteante e nitidez imperdoável.
Enfim, deixara ela sua marca no mundo?
Por que este coração exigente, rebelde, colocando sempre tão alto seus ideais? O que é esta vida, afinal?
‘Pare, pare, tempo! Fique aí parado enquanto procuro dignificar minha existência, deixe-me fazer qualquer coisa que a torne diferente do nada.’
Vinte anos. Uma eternidade. Um nada.
Já os parentes escolhiam rosas brancas para Iemanjá. Iam todos à praia.
Ela pegou uma vela azul e três botões de rosa, rumo à água.
Vivia agora o melhor momento, acesa a vela, jogadas as flores, caminhando à beira d’água a olhar as estrelas, sentindo a carícia envolvente da brisa, a maciez da areia molhada sob os pés, a melodia das vagas sob a imensidão da noite.
De volta à casa, dez segundos para a meia-noite, alguém passou correndo por ela, com um cacho de uva na mão, uma taça de champagne na outra, a gritra: ‘Viva o Ano Novo!’
Risos, mil abraços e felicitações, algazarra.
No jornal do dia seguinte, ao lado de uma cegonha carregando um nenê no bico, letras enormes e festivas:
‘UM PRESENTÃO PARA VOCÊ. UM ANO INTEIRINHO QUE NINGUÉM USOU.’

segunda-feira, dezembro 27, 2010

Justiça

O filho do ministro estava parado na calçada esperando pelo sinal verde, quando alguns rapazes pobres se aproximaram: dois derramaram álcool em suas vestes e o terceiro acendeu um fósforo.
Apesar de ser socorrido em seguida, o filho do ministro morreu. Um de seus agressores foi libertado assim que se descobriu que ele era de menor, sendo portanto juridicamente incapaz. Os demais não foram a júri popular, pegaram uma pena branda por serem réus primários e porque explicaram tratar-se apenas de uma brincadeirinha.
O ministro, inconformado, desabafou sua revolta com a juíza e um amigo desembargador:
- Pena de morte é pouco para estes assassinos!
O desembargador explicou ao amigo que o termo era inadequado, pois não houvera intenção de matar: todo mundo sabe que o fogo queima, mas não mata.
O ministro engasgou-se, a juíza exlamou:
- Há, inclusive, jurisprudência. Há algum tempo atrás, um índio pataxó... o ministro lembra, pois o seu filho esteve envolvido. O caso registrou o precedente: atear fogo em gente não é homicídio, nem doloso, nem culposo.
O ministro arroxeou:
- O índio morreu contra a lei – afirmou o desembargador – Se o fogo não mata... Diga-se o mesmo das vítimas do Andraus e do Joelma, morreram todos contra a lei, por desconhecerem que o fogo não mata.
- A propósito – comentou a juíza – até estudamos a possibilidade de ordenar a ressuscitação imediata de toda esta gente, pensamos em enviar uma intimação ao plano astral através de um médium, mas este nos explicou que muitos desencarnados já renasceram, alguns no Canadá, outros na Austrália, outros até fora do sistema solar, em mundos paradisíacos, e seria muito complicado trazê-los de volta.
- Mas o ministro não se preocupe – continuou o desembargador – casos como este não tornarão a se repetir. Está sendo estudado um projeto de lei que retira o extintor obrigatório, substituindo-o pelo aviso: “Em caso de incêndio, lembre-se: o fogo não mata”.
O ministro, lívido, levantou-se.
- Ah, ministro, antes que sais, um aviso: há muitos índios em Brasília passeando com arcos e flechas. Eles me esclareceram que vieram em busca de diversão. Uma brincadeirinha típica da tribo, acertar no alvo.
- Como?
- Ora, não há com o que se preocupar. Os índios garantiram: flecha fura, mas não mata.

O clone

A solução, afinal!

Dizem que, em Santos, são 24 mil a mais. Em alguns lugares, consegue ser pior, chegando a cinqüenta por cento o número de mulheres na população.
Para onde quer que se olhe, há mulheres. As universidades estão inflacionadas de mulheres. Os bancos, a mídia, até locais tradicionalmente masculinos como associações de escritores e estádios de futebol vão, aos poucos, se locupletando de mulheres.
Ouvi dizer, a boca pequena, que ao Grão-Mestre da Maçonaria foi sugerida a conveniência de recolocar a figura da Deusa acima do Grande Arquiteto do Universo e a abertura do Templo às fêmeas da espécie.
O certo é que a solução apareceu.
Alegrem-se, mulheres! Chegou o clone! Todos os nossos problemas existenciais se acabaram.
Sem par para sábado `a noite? Que tal um clone do Tom Cruise, do Cláudio Heinrich ou do Marcelo Antony? Você poderá escolher entre bons dançarinos, gourmets, esportistas, intelectuais, tímidos ou garanhões. Homens para todos os paladares. Dos catorze aos oitenta anos haverá um amplo leque de escolhas, de Bruno de Luca a Mário Lago.
Se você acha que estou exagerando, acompanhe a filha adolescente à boate ou à praia e constate: até mesmo para a deslumbrante Todo-poderosa com tudo em cima perfeita em todos os detalhes não está fácil arrumar um homem.
É claro, deverá haver severas normas a serem obedecidas para a clonagem:
Regra n º 1 - Com exceção de Madre Teresa de Calcutá (cujos clones deverão ser recomendados a todos os governos do planeta), nenhuma mulher poderá ser clonada.
Regra n º 2 -Será terminantemente proibida a clonagem de panacas, fubangas, malas sem alça e chatos de todos os tipos.
Regra n º 3 - Sob hipótese nenhuma serão clonados tipos nocivos à sociedade, tais como políticos, economistas e sociólogos com pretensões à presidência da República.
§único – A violação da regra 3 será considerada crime hediondo e punida com a morte sob tortura iroquesa.
Como? Alguém ousa levantar a voz contra a clonagem? Reflitam, mulheres!
O excesso populacional feminino é, há muito, conhecido, e alguns povos resolveram o problema muito praticamente através do genocídio de recém-nascidas. Será que adotaremos este método bárbaro? Há outras soluções igualmente extremistas – comunidades gays ou cavernas para eremitas, cuja falta de conforto ou calor humano não me atraem nem um pouquinho.
Recuso a priori a solução árabe – o harém – pois, com meu sangue latino, sou ciumenta, possessiva, exclusivista e não tenho alma de escrava. No meu pedaço mando eu!
Mulheres, à luta!
Mobilizemo-nos a favor da clonagem.
Vivam os homens! Na falta de um original, viva o clone!
Se necessário for, conquistaremos o poder! Mudaremos as leis! E modificaremos até o Livro Sagrado, pois, do jeito que as coisas vão, com esta escassez de homens, para a grande maioria das mulheres a verdade é:
“...ainda que eu tenha o dom da profecia, ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver um clone, nada serei.”

Se eu tivesse visto...

A Dra. Cristina já colocara as luvas e pegara a seringa com adrenalina quando a porta abriu-se, e o homem entrou revólver em punho. ‘Vou morrer’, pensou a médica.
A coisa toda não demorou vinte segundos. O Dr. Maurício atravessou a sala, empurrou o homem para fora, fechou a porta com a chave e voltou a conectar os eletrodos do eletrocardiograma. As outras três pessoas na sala de emergência olharam-no como herói.
A linha horizontal no monitor pedia urgência. O paciente na maca recebera um choque elétrico e estava em parada cardiorrespiratória.
Caio voltou a insuflar o ambu. Cida fixou o escalpe para o soro na veia do antebraço. Cristina aplicou a adrenalina intracardíaca e Maurício anunciou:
- Ritmo sinusal, sessenta por minuto. Conseguimos.
O ambiente silencioso pesava. Os rostos demonstravam medo. Nada das piadas e gracejos usuais para quebrar a tensão. Somente Maurício agia normalmente.
- O paciente está pronto para a UTI, pessoal. Que é que a com vocês? Por que ninguém se mexe? Abram esta porta!
Lá fora ouviam-se gritos, ruídos de luta, agitação.
Caio gaguejou:
- É que... é que... é que...
Já Cida suspirou, escorregando a o longo da parede:
-Ai, doutor...
Maurício amparou Cida, deitou-a no chão, verificou a pressão e chegou-lhe um ‘flor de maçã’ ao nariz para reanimá-la. Lá fora a confusão acalmara. E como ninguém ousasse sair do lugar, o próprio Maurício abriu a porta e empurrou a maca rumo à UTI, arrastando Cristina consigo:
- Vamos com isso.
Pelo corredor, agora anormalmente silencioso e deserto, os dois dirigiram-se à UTI, onde entregaram o paciente e seguiram para tomar um merecido café.
Cida e Caio já estavam na copa. Caio comentou:
- Era o irmão mais moço quem entrou na sala, fez a maior confusão na recepção até que os policiais os levaram para a delegacia. Ficou gritando que os médicos iam matar o irmão dele. Cada louco que nos aparece...
Cida agradeceu:
- Mas que sangue-frio, Dr. Maurício! Como o senhor foi corajoso!
E Cristina acrescentou:
- Eu pensei que ia morrer. Se não fosse você...
Maurício olhou intrigado de um rosto para outro:
- Do que vocês estão falando, afinal?
- O senhor enfrentou o homem!
- Claro! Ele ia atrapalhar, contaminar o campo, podia desmaiar lá dentro, pegar algum material, sabe-se lá o que mais...
- Maurício, você não viu o revólver?
- Revólver?
- Doutor, o homem estava armado!!! Ele apontou a arma para o seu peito e o senhor nem se abalou!
Maurício fica de repente muito pálido e murmura, antes de escorregar ao longo da parede, desmaiando:
- Se eu tivesse visto o revolver, não teria saído do lugar!

(publicado na revista Movimento nº 4 – ano VIII, do laboratório Novartis, em 1998

Madrugada

- Socoooooooooooooorro!
Ao farfalhar das copas da árvore, enquanto o homem subia rapidamente, seguiu-se o som possante das patas da fera sobre o tronco – PAM!
Em meu sonho, a floresta estava envolta em espessa neblina. Sobressaltado, espiei. A luz do sol nascente projetava paralelos riscos vermelhos por entre as frestas da janela. O traque-traque monótono do despertador casava-se ao som distante dos primeiros ônibus lá na avenida.
Aguardei os sons familiares – o estalar do trinco do portão, o tilintar dos vidros de leite, o dilacerar do pão ao ser espetado no prego do batente da porta de entrada – inútil insistir com o moleque Erasmo para que colocasse a ‘bengala’ no suporte apropriado, junto com o leite – ele invariavelmente respondia que assim, no prego, ‘era mais seguro’ (?!). }O jeito era conformar-se em perder, diariamente, uma fatia do pão.
- Ai, meu Deus! Ai, minha Nossa Senhora! – gemidos e soluços, ruídos de folhas a roçar ... que sonho tão nítido!
- Socooooorro!
Sentei-me, totalmente desperto. O grito soara muito próximo. Acendi a luz e vasculhei o quarto com o olhar. Vazio. E no entanto... aquela respiração entrecortada no meu ouvido esquerdo!
- Acudam!
Não era possível! Como alguém poderia estar tão próximo à janela, sem balcão nem gelosia?
A seguir, um choro, de cortar o coração.
Abri a janela, intrigada.
À minha frente, o moleque Erasmo, camisa rasgada, sapato em apenas um dos pés, de cabeça para baixo como um bicho preguiça, oscilava perigosamente nos galhos frágeis da ameixeira.
O pão matinal, lá embaixo, sujo de terra, fora estraçalhado pelo cão, que eu esquecera de prender.

Intertextualidade

Há momentos em que a solidão nos pesa, momentos à Manoel Bandeira:
‘... e quando de noite me der / vontade de me matar / vou-me embora pra Pasárgada.’
Há momentos em que a solidão nos enriquece, momentos à Cecília Meireles:
‘... caminho sozinha pela tarde, mas a tarde é minha.’
Há momentos zen, momentos à John Magee:
‘...sobre as nuvens, com as mãos estendidas, toca-se a face de Deus.’
Há momentos eternos, momentos à Drummond, em que a vida se impõe a nós:
‘...a vida, apenas, sem mistificações.’

Anúncio pessoal

Oportunidade! Somente hoje!
(motivo: sou de Gêmeos, amanhã provavelmente terei mudado de idéia e partido para uma excursão ao Ártico, sem deixar endereço)
Posso ser conquistada por um conversador brilhante que tenha à mão um comentário inteligente para qualquer assunto, do paleolítico ao Hubble ou por um jogador de xadrez apenas razoável, que é para eu poder ganhar algumas vezes.
Procuro alguém ‘do dia’, que aprecie o nascer do sol, os almoços, os encontros de fim de tarde, pois após as dez da noite minha atividade preferida é dormir, no sentido literal do termo, que para isso é que foi feita a noite.
Faço questão de que o meu homem tenho boa aparência, que se cuide, que não tenha a barriguinha denunciadora do chope nosso de cada dia. Não precisa ser nenhum Tom Cruise, aliás meu ator favorito é mesmo o Al Paccino – feio, baixinho, parece insignificante, mas esbanja talento e autoconfiança.
Sendo uma mulher tradicional, procuro um homem que seja mais velho, mais alto, e, se possível, mais sábio. (não precisa conhecer mitologia a fundo, porém é desejável que saiba o nome dos deuses do Olimpo)
Sou sofisticada. Não me venha de chinelos, convidando para um sanduíche em algum quiosque, ou conhecerá o meu talento para o desaparecimento imediato e definitivo.
Meu desejo é o de todas as mulheres: compromisso. Se você encontrar por aí alguma com um discurso diferente, fique esperto! Experimente dar-lhe um solitário e observe que o brilho em seus olhos não PE pelo ‘um diamante’, é pelo ‘para sempre’.
Respostas corajosas, bem humoradas e criativas podem ser enviadas aos cuidados da redação.
A resposta mais charmosa será publicada no próximo número, a não ser que a autora se encante com o missivista, caso em que este corre o risco de tornar-se um autor anônimo, para sempre desconhecido do grande público.

domingo, novembro 28, 2010

Computador de arqueólogo.

O computador de meu trabalho é egípcio, creio, pois em sua barra, na área de trabalho, só há hieróglifos. Para começar, o olho de Hórus, que revela o numero IP de minha máquina. Ao lado, uma tábua de passar roupa com um gorro verde na ponta – ou será uma língua lambendo um confeito verde? – ao lado de um reco-reco, ou talvez seja um ralador de legumes, que não tenho a menor idéia do que representa.
Vem a seguir um escafandrista ferido - pois exibe uma ponta vermelha para fora do visor, como sangue ou labareda, e a miniatura que parece o robozinho simpático do filme Guerra nas Estrelas, na sequência.
Completa a minha particular pedra de Roseta uma xícara de chá fumegante que descubro representar o tal do JAVA.
Chamo o helpdesk, que, para meu espanto, pede o numero IP, que, por que motivo eu não sei, está estampado em letras enormes na tela de abertura, tornando o olho de Horus redundante.
Diante desta barra de trabalho tão inútil, sorrio, pois, apesar de, ou por causa de sua aparência exótica, ela é bem bonitinha.

domingo, agosto 29, 2010

Algumas histórias de uma casa feliz


Introdução

A casa estava ás escuras. Pela janela aberta, no crepúsculo da tarde, a paisagem chuvosa esfumaçava-se em um degradée de tons cinzentos – mar, céu, nuvens, areia.
Silêncio.
As duas moças avançaram silenciosamente escada acima. Em breve ouviram a voz da mae, a gesticular, entre sussurros e suspiros.
Catarina acendeu a luz. Carolina censurou:
De novo, mamãe, falando sozinha!
A senhora sorriu, murmurando:
Quem disse que estou sozinha, querida? Estou aqui conversando com meu passado... com meus mortos queridos... meus fantasminhas... – piscou um olho, para que a filha percebesse que estava a brincar, não fossem pensar que a mãe delirasse, - Esta casa está tão cheia de lembranças....
As moças, ao mesmo tempo:
- É verdade, lembra daquela vez...
Risos.
Eram boas lembranças.




Histórias de crianças


Sentadinha na janela

Mãe de primeira viagem leva cada susto!
Lúcia estava a varrer flores no jardim quando levantou os olhos e o coração congelou de pavor. Na janela do andar de cima, a pequenina Catarina, de dois anos balançava os pezinhos.
Silenciosamente, pois, se gritasse, a garotinha poderia assutar-se e cair, Lúcia subiu as escadas com lágrimas nos olhos, aproximou-se por trás da filha e abraçou-a, retirando-a carinhosamente do parapeito.
Piu piu! – apontou a pequenina.
Ah, os passarinhos – Lúcia ria como louca – Vamos ver os passarinhos lá no jardim, ao lado da mamãe,
Abaixou a vidraça – ela sempre deixava as vidraças arriadas, quem tem criança nunca pode descuidar de nada. Esquecera uma vez....e a pequenina, muito esperta, empurrara um banco até a parede para alcançar a janela.
Na mesma tarde, Lúcia providenciou a colocação de grades em todas as janelas da casa.
Na semana seguinte, Lúcia estava a varrer folhas no jardim, quando levantou os olhos e o coração bateu forte. Na janela do andar de cima, a garotiinha subia pela grade como uma aranham, jogando beijos para a mamãe lá embaixo....
Um minuto de descuido

Mãe não pode mesmo distrair-se.
E nem fora distração e ,sim, pressa.
Lúcia correra a recolher a roupa do varal, que verão em Santos é assim: o céu de cartão postal fica preto de repente e a tempestade cai antes mesmo do primeiro trovão; depois a chuvarada pára tão subitamente quanto começou, deixando ruas alagadas, pessoas encharcadas e varais ensopados. Ora, ao ouvir o trovão, Lúcia saiu da copa; ao retornar, não viu a filha, ouviu apenas sua voz alegre a exclamar:
Areia! Areia! – a pequenina pronunciava ‘aeia’
Uma nuvem de pó claro espalhava-se pelo ar. Um monte de pó, no chão, em frente à menininha, que sorria para a mãe na maior alegria, a brincar:
Paia! Painha! – ou seja praia, prainha...
Leite em pó. Lúcia deixara a lata aberta sobre a mesa e a menina a derrubara.
E Lúcia ficou entre o riso e as lágrimas. A cena era inesperada e engraçada, mas o trabalhão que teria para limpar a filha, o chão, a mesa....
E por enquanto era apenas uma, logo seriam duas...

Nova luz em nossas vidas

Catarina correu para a mãe, saudosa, e deu um passo atrás ao perceber o novo bebê. Ficou sem fala e sem ar.
Lúcia colocou Carolina no berço e pegou Catarina ao colo. Ficara pela primeira vez longe da filha, quase um dia inteiro. Começou a lembrar a menina das conversas dos últimos meses sobre a irmãzinha que chegara. A angustiada Catarina interrompeu:
Você não é mais minha mamãe?
Claro que sou sua mamãe, querida, e sou mamãe da Carolina também.
Catarina pulou do colo de Lúcia e correu para o colo do pa:
Mas o papai é meu!
Papai explicou:
Sou seu papai e papai da Carolina também.
Com os olhos vermelhos de lagrimas, a garotinha procurou pelo avô, a cujo pescoço agarrou-se a soluçar em desespero:
Mas o vovô é meu. Só meu, só meu, só meu.
Ah, o sofrimento infantil!
A voz forte do avô fez-se presente:
Vovô é só seu!
Como é que ele ia escapar desta afirmação desastrada era uma tarefa que ia mantê-lo ocupado pelos próximos anos.

Leituras familiares

Família que lê unida permanece unida – exclamava papai, nas manhãs de domingo, estirado em sua cadeira preguiçosa.
Mais que um habito, ler nesta família era um verdadeiro vício, um vírus que contaminava a todos.
Algumas famílias tem em suas casas um salão de festas, um porão para jogos, uma área para churrascos. A família Rodrigues tinha uma biblioteca.
As historias começavam no berço, com as cantigas de ninar, em que barcos singravam os mares azuis em noites de luar e gaivotas percorriam os céus nas asas do vento, acalantos diferentes das convencionais canções de terror sobre bichos papões.
As primeiras papinhas eram ilustradas com as historias do avô, quando o avô era pequenininho e as histórias do tio Juca quando era um garotinho.
Uma borboleta que entrasse pela porta no momento da refeição virava personagem. O jardim foi o nascedouro das histórias da borboleta azul, bailarina vaidosa; da borboleta branca, desobediente, que o passarinho comeu quando se afastou da mamãe, da borboleta amarela que não comia e ficou doente, e até, quando mamãe descobriu um casulo em um dos vasos, e acompanharam seu crescimento até sua moradora sair em uma manhã ensolarada, a história da lagarta triste que não sabia que dentro dela escondia-se uma alma de borboleta.
Quando começavam a engatinhar, as meninas ganhavam livros coloridos com histórias de bichos. Catarina preferia as aventuras do elefante que passeava pela beira do rio, e pedia que lessem para ela a mesma historia centenas de vezes com prazer imenso. Certa tarde Lúcia encontrou a filha deitada no chão, dormindo sobre a barriga do pai adormecido, com o livro na mão.
Ao crescer, as meninas inventavam suas próprias histórias, como aquela do macaco que comeu uma banana cascada, invenção de Carolina que fez os pais racharem de rir. Para Carolina era tão claro que, se havia frutas descascadas, por força havia também de haver as cascadas....
E houve a noite em que Lúcia, exausta, sentou-se para adormecer as filhas com a história do momento, Branca de Neve e os sete anões, e, a certa altura, surpreendeu-se com os protestos das meninas:
Não, mamãe, não!
Sonolenta, ela esfregou os olhos, dando-se conta de que ferrara no sono, e escutou, com espanto, o que as meninas diziam:
Mamãe, a Branca de Neve não entrou no disco voador!


Direto do céu

O melhor da casa era o lado de fora.
Na sombra da varanda havia a rede para as tardes preguiçosas. No corredor para a garagem o tio fizera para elas dois balanços, e haja vaivém. No jardim havia todo tipo de bicho miúdo e de matinhos que viravam comidinha, colares, brincos e pulseiras.
Certa tarde Carolina viu qualquer coisa no telhado. Bem grande. E como a mãe não conseguia ver debaixo o que era, o jeito foi acionar a vizinha.
É uma águia, Dona Lúcia, mas não tem perigo, não, deve estar morta.
Na verdade, o telhado começava a encher-se de urubus.
Podemos ir aí ver?
Espiando da casa da vizinha, por sorte um pouco mais alta que a delas, lá estava o pobre do bicho caído entre a calha e a primeira fileira de telhas, abrindo o bico ameaçador para cada urubu que tentava aproximar-se.
Lúcia chamou os bombeiros.
É um pássaro bem grande, não sei dizer o que é, mas está vivo.
Para a criançada na rua, foi uma novidade quando o caminhão de bombeiros chegou, rodou a enorme escada, a ave foi laçada pelo pescoço e colhida em uma rede forte. Os bombeiros disseram que iam levar a ave a um veterinário.
Era um faisão, que, depois de medicado e tratado, foi devolvido à natureza.
Fizemos uma boa ação, meninas – disse mamãe. – Devemos cuidar da natureza. As aves de rapina estão em extinção e devem ser protegidas.
Bem, os urubus, que ficaram com fome, não devem concordar.

Senhoras e escravas

Enquanto Catarina observava joaninhas e organizava corridas de caracóis, Carolina entretinha-se com as formigas. Estes bichinhos, inquietos e agitados, como ela própria, a fascinavam. Seguia as trilhas das formigas por entre os pedregulhos e plantas ate descobrir as entradas dos formigueiros.
No lado avesso de certas folhas, quer dizer, no lado protegido do sol, Carolina encontrava insetos brancos e gordos rodeados de formigas; ficou eufórica quando um professora explicou, em classe, que os pulgões eram como vaquinhas de formigas, que cuidavam deles como vaqueiros cuidam do gado.
Havia no jardim três tipos de formigas: uma bem miudinha, que preferia os muros a paredes, havia as vermelhas gordas e as pretas magrelas.
As pretas magrelas, compridas, eram nervosas e apressadas, brigavam muito entre si. As gordas vermelhas eram lentas como damas autoritárias, brigavam entre si e com as pretas. Algumas vermelhas tinham grandes ferrões nas cabeças e Carolina as chamava de guardas. Quando a menina batia na porta de um formigueiro vermelho com um pauzinho, as formigas comuns desapareciam dentro da terra e apareciam montes de formigas guerreiras. Havia carreiras de formigas vermelhas a carreiras de formigas pretas e carreiras mistas, em que só as pretas carregavam folhas.
Que curioso, as vermelhas escravizam as pretas...
Que bobagem, você não sabe de nada – Catarina dava de ombros.
Um dia, um documentário de televisão sobre a vida animal mostrou como as formigas vermelhas escravizam formigas pretas e as fazem trabalhar para elas. Carolina olhou para Catarina e não disse nada. Catarina baixou os olhos e também não disse nada.
Naquele dia Carolina aprendeu como funciona a mente de um cientista – observa e pensa. Naquele dia Carolina também entendeu uma frase que o pai repetia: o melhor livro é a natureza, mas é preciso aprender a ler.

Pensamento positivo

Certa tarde Lúcia foi surpreendida pelos gritos de Carolina:
Socorro, mamãe, tem um troço duro na minha boca!
Era o primeiro dente de leite que caía.
Lúcia correu ao banheiro, onde a menina se enfiara.
A pequena, otimista, tinha o habito de ver a vida sob seu melhor aspecto. Antes que a mãe chegasse perto ela já estava a sorrir, olhando o liquido vermelho que escorria de seus lábios e tirando lá suas conclusões:
Não se preocupa, não, mamãe, meu dente caiu mas saiu um remedinho junto...


Um safári na biblioteca

Nas tardes muito abafadas, o melhor lugar da casa era, de longe, a biblioteca, até porque era possível viajar nos livros até a terra dos pingüins e sentir frio.
Podia-se jogar dama, xadrez, ludo, dominó ou simplesmente desenhar e pintar na escrivaninha de papai, no grande bloco de papel de rascunho que ficava lá à disposição de quem quisesse.
Uma tarde, de um livro antigo folheado por Catarina, caiu um leão africano, na verdade, um selo amarelado de um pais desconhecido. Mamãe, chamada para ver, olhou e traduziu – o selo vinha de um pais chamado África do Sul.
Aproveitando a deixa, mamãe pegou o Atlas e mostrou, no mapa, onde ficava o tal país.
Os adultos da casa aproveitavam incidentes como este para ensinar as crianças a usarem o atlas, o dicionário, o ábaco, e conversarem sobre a historia da Humanidade – com h maiúsculo, sim.
Naquela tarde o selo gerou um grande interesse pela África, seu bichos, seus países, sobre os povos que vieram para o Brasil e contribuíram para a formação do povo brasileiro.
Carolina mal suportou esperar o retorno do pai – não havia celulares naquele tempo – para que ele contasse em que carta viera aquele selo. Quando papai chegou em casa, contudo, ficou surpreso, disse que emprestava seus livros a tantos alunos e amigos, e, assim, o mistério não foi esclarecido.
Mamãe opinou, romântica:
Melhor assim. Agora temos um fato misterioso em nossa casa. É como se morássemos em uma casa encantada.

Desta água é melhor não beber

A pequena Carolina respondeu ao garçom:
Quero pinga.
Isto aconteceu na primeira vez em que a menina saiu a almoçar fora com a família, e o avo afirmou que ela poderia pedir o que quisesse. Papai, entre o riso da situação inusitada e a vergonha ante os olhares espantados dos outros clientes, resolveu a situação pedindo suco de laranja.
De onde você tirou esta idéia, Carolina? Ninguém toma pinga lá em casa.
A pequenina explicou, candidamente;
Quando vamos buscar pizza lá no bar da esquina, sempre tem um homem servindo pinga no balcão. Eu queria experimentar.
Ora essa....
O avô costumava dizer:
Bebês chupam chupeta, adultos bebem cerveja.
Na verdade, para não ‘aguar’, as netas podiam, sempre que quisessem, dar ‘uma bicadinha’ em seu copo, só para sentir o gostinho. No fundo, ele esperava que o gosto amargo provocasse repulsa nas crianças.
Os antigos preocupavam-se muito em não aguar as crianças. Aguar era adoecer de desejo por uma comida ou bebida. O desejo reprimido matava, se não satisfeito a tempo.
A família redobrou a vigilância sobre as bebidas. O bar ficava trancado a chave e só era aberto em dia de festa ou se havia visitas. Ninguém consumia mais do que um copo de licor ou vinho, nessas ocasiões. E, nas festas, olho vivo em cima da Carolina.
Até a véspera de Ano Novo, quando, fechando o portão às costas do ultimo convidado, ninguém avistou a menina. Chama daqui e dali, e nada.
No salão de festas, uma fileira de copos e taças totalmente vazios, e Carolina, debruçada na mesa, com um bigodinho de espuma ao redor dos lábios. A menininha esvaziara o fundo de todas as canecas e ressonava gostosamente.
Desaguara...
O passarinho ingênuo

Mamãe gostava muito de pássaros e costumava pendurar comedouros e bebedouros no terraço para eles.
Quando as meninas arrumaram um cachorro, os passarinhos ficaram mais ariscos, pois o cachorrinho corria para pular nas avezinhas.
Uma tarde calorenta, contudo, Carolina estava modorrentamente estudando no sofá – traduzo: dormindo – com o cachorrinho dormindo sobre sua barriga, quando foi acordada por pequenos beliscões em seu braço. Surpresa, abriu os olhos e viu uma avezinha passeando em cima dela, bem ao lado do cãozinho, que, por sorte, não acordou.
Na tarde seguinte, indo tomar água, Carolina ouviu um barulhinho perto da porta, olhou para o chão e lá estava o mesmo passarinho, pasmem, bebendo água na gamela do cachorro.
Dois dias depois, Carolina chegou à conclusão de que o passarinho, definitivamente, era maluco, pois estava caminhando pelo chão da sala, à toa, indo direto em direção ao cachorrinho que, de tão espantado, nem se mexia.

O passarinho atrevido nunca mais foi visto, e não sabemos se foi devorado por algum outro bicho menos amistoso que o nosso filhotinho de cachorro.


Historias de jovens

A oportunidade bata à porta

A musica brasileira é maravilhosa, mas em algumas épocas parece que dezenas de gênios musicais pipocam com especai encanto. A jovem guarda, por exemplo.
Assim os jovens dos anos sessenta e setenta se consideravam – a Jovem Guarda.
Sua música causava furor nos famosos festivais da TV Record. As rádios difundiam musicas cujas letras eram consideradas irreverentes: ‘que tudo vá pro inferno’, ‘deixa que digam, que pensem, que falem’, ‘ vou mandar a maior brasa, mora’.
Hoje parecem palavras inofensivas, mas, para a geração de pais com postura e compostura daquela época, esta frase singela soava como uma ‘rebeliao’ neste país sem guerra. Lá fora, com a absurda Guerra do Vietnã, o caso era outro. Os Beatles e os Beatniks desafiavam governos, no embalo do movimento hippie, este sim, forte constestação política, levando jovens á prisão, propondo mudanças radicais no comportamento social, como famílias coletivas, paz e amor.
Carolina e Catarina estavam no quarto entretidas com suas coisinhas de adolescentes, quando os sons vindos da rua trouxeram o clima de euforia para dentro da casa – apupos, gritos, assobios, buzinaço, gritaria.
Eis que, apoiados ao portão, estavam nada mais nada menos que o rei Roberto Carlos e seu amigo Erasmo ao lado, os dois mais famosos cantores da Jovem Guarda.
Reconhecidos e perseguidos pelas fãs enlouquecidas durante um passeio a Santos, os dois pararam o carro e desceram para distribuir alguns autógrafos, bem em frente ao portão da casa de Carolina e Catarina.
As duas gritaram e debruçaram-se até quase cair da janela, em sue entusiasmo. Lúcia veio ver o que acontecia e lá ficaram as três à janela, a observar o populacho.
Ah, como eu queria um autografo deles!
E a timidez? Cadê coragem?
Lúcia empurrou as filhas com carinho:
É só descer, meninas.
Com as faces pálidas, a respiração suspensa, os coraçãozinhos saltando sob as blusas, chegaram no portão a tempo. Afinal, quem mais que elas tinha direito aos autógrafos? Era o seu muro, não? Nem conseguiam falar, só esticar as mãos com os bloquinhos e a caneta.
Roberto Carlos sorriu para elas.
Erasmo também.
Durante semanas, as meninas trataram o muro como um pagão trata um altar.