quinta-feira, março 31, 2005

Dias de outono


@ da autora - registrado na Fundação Biblioteca Nacional

continuo hoje a edição do livro Dias de Outono, um diário sem datas, porque, na vida interior, datas não importam, está-se a contar uma outra vida, oculta sob a pele, a vida daquele outro que ninguém conhece, aquela vida sobre a quel Fernando Pessoa referia-se como a vida que é pensada, mas nem por isso, penso eu, menos sentida.

Boa leitura!


Parte 2

Idéias para um concurso promovido pela Nestlé, pois, ao contrário de minha vizinha, adoro cozinhar, correção: adoro fazer doces:
Nestlé faz parte do álbum da família desde o primeiro aniversário de minha filha, nos doces caprichosos e deliciosos que enfeitam as mesas das festas.
O seu primeiro bolo foi um tambor, confeitado em rosa e azul, com baquetas de biscuit. E recheado com Leite Condensado Moça.
O segundo foi um relógio, com números de chocolate e mostradores de confeitos.
O terceiro foi uma boneca, negra, com cabelos de granulado, porque a aniversariante era doida por chocolate.
No quarto aniversário a casa virou circo e o bolo palhaço ganhou cabelos de fios de ovos e nariz de goiabada.
O quinto aniversário foi comemorado com um barco à vela, simples de confeitar, porque a mãe estava sem tempo; a graça da mesa ficou por conta dos smurfs que navegavam nele.
No ano seguinte, a mãe estava de férias e caprichou na decoração do Sítio do Picapau Amarelo. O bolo nem poderia ser outro: a boneca Emília.
Outros bolos esperam sua vez na espaço do armário reservado às publicações culinárias: o já gasto Livro de Receitas Culinárias de Chocolate de Juliette Elkon, os livretos sobre festas infantis e festas juninas da Nestlé e, é claro, a maravilhosa coleção de revistas Nestlé e Você. Ao lado, no meu caderno de receitas, há uma parte especial dedicada aos recortes de bolos cuidadosamente colecionados das latas de Leite Moça. E, na primeira página deste caderno de capa dura, que a professora do ginásio profetizou “deverá durar a vida toda”, está a primeira receita que fiz, aos doze anos, copiada do caderno da melhor amiga: o pavê Nestlé.




Ainda Kafka. Penso naquele incrível conto sobre o gato e o rato e salta-me à memória a imagem de um Buda de marfim e de Monteiro Lobato. Não há nenhum elemento de ligação entre a estátua, Lobato e o conto de Kafka (nove anos de análise freudina poderiam ser desperdiçados nesta busca inglória), mas Kafka é assim: dá nós no cérebro. Se eu escrevesse como Kafka estaria há muito confinada entre quatro paredes, confirmando assim as idéias kafkianas.
Se Kafka nascesse no Brasil o sol dos trópicos avacalharia com seu pessimismo. Que seriedade resiste a um meio-dia de fevereiro ao ar livre? O suor não tem dignidade.
Ao ser apresentado a uma água de coco gelada, Kafka relaxaria e trocaria as gargalhadas com que acompanhava a leitura de seus contos por um sorriso de, pasmem, puro prazer. A sensação inusitada implodiria seu universo. E as invés de escrever, o tcheco comporia sambas, entrudos, presepadas e bossa-nova, teria talvez criado o Ritmo do Absurdo, tão de conformidade com nossa História.
A genialidade será talvez genética, no entanto acredito na superioridade da geografia. O clima mudaria tudo.


Antigamente, as pessoas consultavam a lista telefônica em busca do número de alguém. Hoje é diferente.
Precisando telefonar para o INAMPS e para a Faculdade Dom Domênico, revirei as páginas brancas e as amarelas. Nada. Liguei para Informações e, de cada vez, ouvi:
- Este telefone não consta da lista.
- Não diga! Se constasse da lista... – bem, do outro lado da linha, a telefonista não sabia que eu estava em casa, com a lista na mão. Tentei argumentar: - A senhora com certeza conhece o Posto de Assistência Médica do INAMPS, na Aparecida, é caso de utilidade pública, este telefone tem de constar em algum lugar!
- Se a senhora souber em nome de quem está o telefone...
A faculdade também não consta da lista, segundo Informações:
- Uma faculdade inteira não pode simplesmente desaparecer! A senhora sabe, com certeza, que esta faculdade existe, não é?
- Não consta da lista. – Clic.
Definitivamente, a “criatura” do outro lado do fio não é mais humana, privatizados que foram os seus neurônios em prol do lucro de alguns.
Encontrar os números necessários é simples, desde que a gente aprenda a técnica. Primeiro, tente o vizinho. Depois, ligue para um estabelecimento similar. Consegui o número do INAMPS ligando para o INSS, onde uma simpática funcionária me forneceu não um, mas dois telefones do posto em questão. Discando para outra faculdade, uma das secretárias forneceu-me o número da Dom Domênico. Este é o procedimento que funciona atualmente.
Quanto à lista telefônica... não, não a jogue fora! Ela é extremamente útil! Com ela, você evita as filas no correio para consultar rotos, ensebados e dilacerados catálogos, pois nela encontram-se os CEPs de todas as ruas de nossa cidade.


UM ANTÍDOTO, JÁ!
Fui envenenada por FHC. Veneno mais tóxico que o BHC, FHC corrói aquele lugarzinho secreto responsável pelo bem-estar e pela paz de espírito, que os místicos chamam de ‘alma’, os junguianos ‘self’ e o cidadão comum simplesmente ‘bolso’. Questão de ponto de vista.
Ainda convalescente da última mordida do Leão, reajo mal a 43 anos de brasilidade.
Devo à CEF, onde fui trocar de pesadelo (do pesadelo do aluguel para o pesadelo da casa própria) uma úlcera de stress, noites de insônia e sessenta dias de completa esterilidade mental – as idéias todas debandaram, em pânico.
Recupero-me aos poucos, na esperança bem brasileira de conseguir pagar juros absurdos com salários congelados há mais de três anos. Valei-me, Santa Rita dos Impossíveis!
As próximas eleições? Meu voto é ecológico, que a vida é para todos e o dinheiro também. Quero respirar!
Agora, com licença, vou fazer pipocas, assistir ao final da Copa do Mundo e tentar convencer o caçula a desistir daquela universidade a R$1000,00 por mês com garantia de desemprego certo:
_ Vai jogar futebol, meu filho!




O caminhão de mudança encostou e eu fui logo avisando:
- Os livros embalo eu!
Pouco me importa o que acontecerá com as roupas, as louças e os eletrodomésticos. Afinal, trata-se de um problema mecânico bastante simples: pegar de um lugar e levar para outro.
Quanto aos livros, a questão é diferente. Na minha primeira mudança fiquei durante uma semana encontrando os coitadinhos nos lugares mais inusitados: na máquina de lavar, no forno, no freezer. Até mesmo servindo de calço para uma perna de sofá capenga _ e olha que era um exemplar novinho, que eu mal começara a ler.
É indispensável examinar o caminhão cuidadosamente antes que parta.
- Tem certeza de que descarregou tudo?
- Sim, senhora. Aí dentro só tem papel velho e uma meia dúzia de livros que caíram dos caixotes.
- Livros? E vocês não os pegaram?
- Pra que? A senhora já tem tanto livro aí, que mais um menos um não vai fazer diferença.
E, estatelados no chão sujo, meu atlas de
anatomia e minha coleção de arte, importada!
Não é muito ruim quando os carregadores enfiam alguns exemplares junto com os sabonetes _ ficam cheirosos por bastante tempo. Chato é quando eles os socam no mesmo caixote com cebolas, pó de café e outras especiarias - por semanas, ao escolher um livro, tenho a sensação de estar indo ao supermercado.
Em outra ocasião, eu embalava cuidadosamente meus cristais, quando dei - me conta de um silêncio incomum.
Onde estavam os carregadores? Procura daqui e dali, afinal encontrei - os sentados na sala, absorvidos na leitura.
Súbita paixão pela literatura? Nada disso. É que haviam descoberto uma Enciclopédia Sexual Ilustrada.
Desta feita eu resolvi fazer na biblioteca a mesma faxina que faço no resto da casa _ sumir com as velharias, cortando o que esteja fora de uso e fora de moda.
Comigo ficaram apenas os clássicos, as obras-primas, os meus preferidos inseparáveis amigos de todas as horas.
Por isso foi tão fácil acomodá-los, pois couberam todos em apenas vinte e cinco caixotes.



Acordo angustiada. Sonhei que na sala onde dou minhas aulas, há uma cama onde escondi minha bolsa. Há muitas pessoas ali, saímos e deixamos a porta aberta. Percebo que há vozes estranhas na casa, mas não digo nada. Quando voltamos para a sala, nada foi roubado, exceto minha bolsa, que alguém encontrou jogada na rua, sem dinheiro, sem as chaves do carro, sem os documentos e inclusive sem o seguro do carro.
Alguém realmente quer tomar a direção de minha vida, sem nenhuma garantia.





Um sonho perturbador. Estou em Bebedouro, com duas colegas que cantavam comigo em um coral, Zulmira e Nívia. Vestida de preto, Nívia está gemendo e não tem pés. Zulmira diz que a dor é por uma perna estar menor que a outra. É madrugada e vamos à praia, onde entramos dentro de uma rocha. Ao entrar na caverna, vejo uma ex-colega de ginásio, imensa de gorda, deitada em uma maca; ela chama, conta para Zulmira que está doente, tem as faces vermelhas e inchadas. Na praia, em declive, há muita gente, a água é transparente e está um dia ensolarado. Suspendo a saia para molhar o pé, não entro na água. Lembro-me de que a primeira vez que entrei na água, nesta praia, mergulhei até o pescoço, recordo a deliciosa sensação de água gelada na pele quente. Torno a entrar na caverna, e a garota gorda diz que emagreceu 4,5 kg. Tornamos a sair, a água subiu tanto que passou a areia e a amurada, inundou o passeio. São águas tranqüilas e as atravesso para ir embora.
Acredito que este seja um sonho sobre partes doentes. Nívia é como um orgulhoso pavão de voz linda e pés feios; desequilíbrio entre ação e emoção; impotência – sem pés não pode andar. A garota gorda, inchada, retém emoções e vê os defeitos alheios. Zulmira sobrecarrega-se de trabalho, é só coração e determinação, dedicada aos outros. Eu estou indefinida andando em companhia de pessoas com problemas sem tomar nenhuma atitude, deixando-me levar.



Ontem senti-me de novo vivendo no interior, quando Fábio convidou-me para ir ao teatro Municipal, assistir um concerto em prol da campanha Aquisição de um Steinway (piano de cauda). É como um flash back de Léa Pitelli em Um Piano para Comedouro.
Comedouro foi uma lição de vida. Lá comecei a entender o mundo dos ricos, a elite culta, a fração elegante dos ricos. Rico é diferente: alegre, seguro, tranqüilo, um privilegiado como consumidor de cultura. Fábio me disse para ir chique que a velharada gosta de ir bem arrumada. Em Comedouro, eu correria a minhas pérolas. Aqui, coloquei meu vestido mais novo, meu colar e brinco básicos, batom básico e gotas de um perfume francês. A velharada inteira parecia estar de uniforme: tailleurs, cores pastéis, as inevitáveis pérolas – colares curtos ou longos, com uma ou duas voltas, e enormes brincos combinando.
O concerto foi divino, viajei na música, um mar de emoções em que o maestro Guga viaja admiravelmente, aliás, do jeito que aquele maestro se mexe, ele parece nadar entre os sons. O pianista vindo de Innsbruck tinha mãos grandes e gordas. Na opinião do Fábio é o melhor pianista do mundo. Já a Regina Amaral, que organizou o concerto, disse tsc tsc, há muitos pianistas melhores, citou o nome de três celebridades internacionais e comentou que, quando eles vêm a São Paulo, sua filha os convida e eles se apresentam no salão particular em casa dela, pois a filha tem um salão para trinta pessoas, com dois pianos de cauda, exclusivamente para esses concertos restritos aos íntimos da família... Como eu dizia, rico é diferente.
Fui apresentada para as presidentes de tantas entidades culturais que não gravei os nomes nem das presidentes nem das entidades. Todas de queixo para cima, peito estufado, olhar de águia, sorriso satisfeito do tipo eu mando e gosto disso. Fábio me apresentou como escritora e eu retruquei à altura, anunciando que sou a editora do Chapéu-de-Sol – literatura e outras artes, lembram-se da reportagem de capa sobre a Zezinha? Maria José Aranha de Resende, a Zezinha, espalhou nossa revista para esta elite toda, foi muito bom para nós, um excelente trabalho de divulgação.
A maior parte dessa elite cultural fechada se conhece desde a infância e se freqüenta em locais exclusivos. Em Comedouro eu diria que são umas sessenta pessoas, aqui umas quatrocentas; a importância que lá se dá ao nome de família aqui é acrescido pelo olha só o que eu fiz/ conheci/vi/participei. Um mundo elegante, refinado, perfumado...





Sonho. Vovó estava aqui, em casa, rindo, rindo...
Antes de vovó morrer, ela ficava com os olhos parados e distantes por alguns momentos e então dizia que estava em um lugar muito bonito, e tanta gente a chamava e ria, ria e que ela se sentia feliz.
Será que vou morrer?

Ser poeta é agradecer a vida com alegria, pois, como dizia Epicuro, os deuses nos deram tudo, exceto sabedoria. Basta escolher, desfrutar, agradecer, exaltar.


HAICAI DE MESTRE

hora do almoço -
pela porta, com os raios de sol,
as sombras do outono

Chora



Dicas de sucesso
Ama tua vocação com paixão, ela é o sentido de tua vida –
Auguste Rodin



sábado, março 26, 2005

DIAS DE OUTONO

começo a publiocar hoje, em capítulos, o diário bem humorado de uma escritora sobre tudo, sua secreta vida mental,
este livro está registrado na Fundação Biblioteca Nacional, @ da autora,
permitida a reprodução desde que citadas autora e fonte.




DIAS DE OUTONO
Sonia Rodrigues

“Sob a pele, há uma vida paralela, onde as datas não importam.”


1994



Há muitos anos não escrevo um diário. O de infância joguei fora, o de adolescente era tão perigoso que rasguei em mil pedacinhos, houve um outro tão sofrido que queimei. No entanto um episódio banal fez cócegas em meus dedos e cá estou de novo a diarizar meu cotidiano. E, com o computador, teoricamente, fica mais fácil, mais sigiloso e nem ocupa espaço...O fato banal, que me levou de novo a escrever, foi o que se segue:
Assiti um documentário sobre Mary Cassat, a pintora impressionista, esposa de Degas.
Ela recebe a visita de Louise May Alcot, a escritora, que diz para a sobrinha adolescente de Mary:
- Se você gosta de escrever, tem de ter um diário. Um diário ajudará você a compreender seus sentimentos.
Comigo não é assim. Eu me confundo ao contar meu dia a meu diário, pois há tantos aspectos diferentes e tantos pontos de vista e tantas personagens interiores querendo roubar a cena, que acabo por não saber o que realmente me aconteceu.
Freqüentemente, escrever diários me leva a descaminhos, a sombrias vielas, sentimentos bizarros ou desagradáveis, a ilusões, a distorções. Apenas transformando realidade em literatura aquela bizarrice adquire significado.
Definitivamente, o mundo dos sentimentos é meu lado sombra.


Custei, mas finalmente resolvi _ é agora que eu aposento a minha obsoleta máquina de escrever.
Ansiosa por entrar na era da informática, comprei um 486 DX2 66. Não se impressionem com esses números todos. Trata - se, como vocês já devem ter adivinhado, de um computador . Um computador pessoal, o mais moderno do mercado, com impressora e multimídia.
E , deslumbrada, a família aventurou - se pelos ícones do Windows adentro. E foi amor à primeira vista _ maravilhoso ... enquanto durou.
E durou tão pouco !
Como eu sou vítima profissional de todo tipo de parafernália moderna , seja mecânica ou eletrônica, as filhas, já acostumadas com a urucubaca, foram reclamando:
- Também, mãe, já dava para adivinhar, tudo acontece contigo !
Há quinze dias os técnicos tentam descobrir porque aquela maravilha não funciona.
Técnico vem, técnico vai, acrescenta - se memória, troca - se a placa, reprograma - se o winchester ... e nada ! Ontem, em desespero de causa, após confabulações misteriosas, os doutores em computação levaram meu Forrest Gump para a UTI.
E cá estou eu a datilografar esta matéria pela maneira troglodita na minha velha e fiel Olivetti.




O comp está apaixonado e cheio de dúvidas !, exclamou minha filha Fernanda, enquanto eu, infeliz, olhava a impressão de meus textos: uma única linha de asteriscos, corações, quadrados, círculos e pontos de interrogação.
No dia anterior o comp não imprimia nada. Eu chamara o técnico, por sorte eu moro bem ao lado da loja. Ele chegara, sentara - se, eu dera os comandos para demonstrar o problema e o engraçadinho funcionou normalmente.
Que raiva!
Lá tive eu que engolir um “às vezes é o usuário que não sabe usar...”
Como se eu não trabalhasse com impressoras há mais de um ano!
No mês anterior eu enviara uma parte do jornal para a redação todo em colagens, porque o idiota se recusara a imprimir a última meia página do tablóide, jogando na tela a mensagem: “O cabo está solto”
Não havia nenhum cabo solto, evidentemente, mas a máquina não se deixava convencer. Quando voltei, Fernanda terminava de compor um trabalho de escola, quinze folhas elaboradamente impressas pelo comp.
Estou absolutamente convicta de que aquela máquina me odeia. Faz de propósito para atrapalhar a minha vida.
Máquina não tem vida ? Ah, tem, sim. Tenho a mais absoluta certeza de que a minha, pelo menos, tem uma personalidade própria.
Pois como explicar que assim que a Fernanda sentou - se em frente ao monitor e solicitou a impressão, o adorável comp imprimiu meus contos direitinho no maior capricho?


É admirável a capacidade de nossas lojas e supermercados contratarem pessoas totalmente desinformadas sobre o que vendem.
Nem falo do vendedor de livros que procura Machado de Assis no balcão dos Últimos Lançamentos ou A Defesa de Sócrates na seção de esportes.
O caso é mais grave, gravíssimo até. Julgue o leitor por si mesmo.
Vou ao supermercado comprar feijões. Há anos compro um tipo de feijão pré-cozido, marca Vapt-vupt. Fica pronto em três minutos com caldo grosso e saboroso. Não encontrando, pergunto ao gerente.
Parece ser o gerente. Está de terno e gravata, usa um crachá do estabelecimento e está dando ordens a outros funcionários. O cidadão me conduz à seção dos ensacados, onde um rapaz me aponta os feijões secos.
- Quero o pré-cozido – explico.
Todos os feijões estão aqui – afirma ele.
- Marca Vapt-vupt – insisto, e, encontrando dois olhares indiferentes, mudo de tática – e onde encontro as batatas pré-cozidas?
- Isto é fácil – o rosto do gerente se abre em um sorriso e ele me leva ao rapaz que descarrega batatas fritas em saquinhos nas seção dos petiscos.
- Procuro as batatas pré-cozidas – explico.
- Aqui estão as fritas. A senhora já olhou nos congelados?
- O nome da marca é Vapt-vupt – arrisco, desistindo de esclarecer que não são congeladas.
- Ah! Estão em frente aos legumes .Por aqui – e o bem informado rapaz nos guia até uma prateleira repleta dos mais diversos produtos da Vapt-vupt, inclusive batatas e feijões. O gerente se dirige a mim no tom mais eficiente do mundo:
- Aí estão suas batatas, senhora.
Agradeço, pego os feijões e me dirijo ao caixa.



Existem duas adolescências na vida: a primeira aos doze, quando nos libertamos dos pais. A segunda acontece quando nos libertamos dos filhos.

O castigo do pecador vem atrelado ao pecado. Assim é que os gordos engordam, os preguiçosos empobrecem, os irados tornam-se hipertensos e as mães... definham aprisionadas na dita ‘relação definitiva’

Mal entrara eu na livraria e caiu-me nas mãos os Contos do Espólio. E lá estava o mais magnífico conto que já li: o rato entre o gato e a armadilha.
Quem foge da ratoeira encontra o gato de Kafka.
Entre a ratoeira e o gato, recuso o dilema, procuro opções. Não sou rato, pertenço antes a uma raça que não tenho bem certeza de poder chamar de humana, mas dane-se o tcheco! Este é meu conto, quero um universo ‘leminskiano’ e decreto que nessas linhas, ‘grafite é o limite.’ Mereço o nirvana, não a ratoeira, nem a goela do gato, nem o kafkiano pessimismo por mais genial que seja. Sou brasileira, dou a volta por cima, faço a hora, não espera acontecer, este exercício intelectual não resolve coisa nenhuma mas é divertido como o quê.


Sou diariamente agredida pelo despreparo culinário da mocinha do andar de baixo. Um verdadeiro terrorismo gastronômico: o pão queimado, o feijão que pega, o cozido que passou do ponto. Já estamos amparados por lei quanto à praga da invasão acústica, quando aos cheiros, a coisa é bem diferente. Nas regras do condomínio há de haver alguma que nos garanta a privacidade olfativa.

quinta-feira, março 24, 2005

HAICAI DE UM MESTRE JAPONÊS

trovão
ontem a leste
hoje a oeste

Kikaku

Para o leitor que não conhece o haicai:

esta é a menor forma poética do mundo, de origem japonesa, tem apenas 3 versos,
e tradicionalmente contém uma palavra, o kigo, que nos remete à natureza: uma flor, um pássaro, a estação do ano etc...

BIOGRAFIA

CONHEÇA A MAGNÍFICA POETA SANTISTA, sobrinha neta de Vicente de Carvalho:



MARIA JOSÉ ARANHA DE RESENDE
por Sonia Rodrigues


Muito há que se dizer de Maria José Aranha de Resende, 'a cigarra que mais alto canta no planalto paulista', no dizer de Olegário Mariano.
Nascida em Santos em 2 de outubro de 1911, a escritora veio a falecer em 17 de junho de 1999, aos 88 anos, dormindo. Era conhecida entre os amigos por Zezinha, a poetisa das rosas, pois esta sua flor preferida inspirou-a para muitos poemas e deu nome a seu primeiro livro: Rosa Desfolhada. Zezinha era cronista do jornal A Tribuna, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santos e fundadora da Academia Santista de Letras. Foi a primeira mulher a ser admitida em uma entidade literária, e isto aos 17 anos de idade. Suas influências poéticas foram poetas com quem conviveu muito de perto: o tio-avô Vicente de Carvalho, Martins Fontes, Paulo Gonçalves, Ribeiro Couto e Martins Fontes.
A cidade de Santos a homenageou em 1974 outorgando o título de Cidadã Emérita a esta poetisa apaixonada por sua terra, que nunca quis deixar em busca de melhor divulgação para seus textos. Mais tarde excursionando pela América do Sul e pela Europa fazendo palestras sobre Vicente de Carvalho, por ocasião dos 25 anos da morte do tio-avô, Zezinha confessava sentir muitas saudades de Santos.
Sua obra poética consiste nos seguintes livros : Rosa Desfolhada; Fonte Sonora; A Flor e Outros Poemas; Sonetos que o amor inspirou ; além de um LP Poemas.
Sua obra em prosa consiste dos livros: Crônicas de Domingo; Vicente de Carvalho, o Poeta da Mar (biografia que lhe valeu o prêmio Luiz de Camões da Academia de Ciências e Letras de Lisboa); Affonso d'Escragnolle Taunay - O Desbravador da História Paulista (biografia que recebeu Menção Honrosa da Comissão Estadual de Literatura)
Zezinha escreveu também Muita Prosa, pouco Verso, obra que recebeu o Troféu Ribeiro Couto - O Livro do Ano em 1983, pela União Brasileira de Escritores.
Zezinha, como era carinhosamente chamada por seus amigos e admiradores, irradiava entusiasmo pela beleza e tanta alegria em viver, que o mundo à sua volta parecia caloroso e bom. Serei sempre grata a Zezinha pela sabedoria que transmitiu, através de sua fé, sua coragem e sua determinação em ser feliz, como podemos perceber neste versos:

Cantiga de Rosa
( do livro Rosa Desfolhada)

Ao contrário dos jardins
que há rosas em profusão,
na vida são mais espinhos
que ferem a nossa mão.
Não amargures a vida
lembrando coisas penosas,
a roseira tem espinhos
mas só colhemos as rosas.
Colhe a rosa que te couber
perfumada e colorida,
e esquecerás os espinhos
que te feriram na vida.
Não abras muito a janela
pois o vento pode entrar
e a tua rosa tão bela
poderá se desfolhar.
Cultiva, por isso, a rosa,
mesmo entre espinhos nascida,
porque os espinhos são muitos
e poucas rosas na vida!


Zezinha tinha a capacidade de utilizar a seu favor as adversidades, e podemos perceber sua força espiritual nestes versos em que ela se refere à poliomielite, doença que a acometeu em criança:

"Mas não fiquei amarga, não....
O que me faltou em movimento
Sobrou em sentimento
O que perdi em ação
Ganhei em imaginação."
Sua última crônica, publicada no jornal A Tribuna no dia dos namorados, foi dedicada ao amor, e finalizada com estes versos:

"Bendito seja o amor, seja sempre bem vindo
Amemos sempre, sim, com toda a intensidade,
O amor traz para nós um benefício infindo
Quando chega, a sorrir, nos dá felicidade
Quando parte, a chorar, nos deixa uma saudade".

Fim de Mocidade
Maria José Aranha de Rezende

Felicidade, que chegou tão tarde,
que veio de mansinho, sem alarde,
a bater levemente à minha porta...
Agora, já no fim da primavera
quando não estava mais à tua espera,
pois para mim foste esperança morta...
Mas é tão lindo o convite que me fazes,
são tão belas as coisas que me trazes,
que a minha alma se abriu, de par em par...
Entra, Felicidade, em minha vida,
desperta esta mulher adormecida,
que se cansou de tanto te esperar!

(de A Fonte, a Flor e outros poemas)

BIBLIOGRAFIA:
Artigos de A Tribuna - 1999
Revista Chapéu de Sol - n°2 - 1999
Livros de Maria José Aranha de Rezende






quero recomendar ao leitor alguns sites de literatura na web, de excelente conteúdo:

Site de literatura www.sitedeliteratura.com/

Revista Poetizando www.revistapoetizando.blogspot.com

Jornal de Poesia www.secrel.com.br/jpoesia/poesia.html

dê um clique, passeiE por eles e divirta-se!!




c o n to


AGUARDE NA FILA
Sonia Rodrigues


Fila é ótimo local para sociólogo estudar povo - pobre povo brasileiro, como poderia ser diferente, se falta-lhe o básico: a escola, a moradia, o emprego.
Na fila do INAMPS, por exemplo, há quem procure o especialista em figos, surdos em busca do Dr. Rino e homens que insistem em marcar consulta com ginecologista porque pegaram 'doença de mulher'.
Um dia desses um fiscal do INAMPS que, vistoriando um posto, percorria os vários setores, na louvável intenção de compreender in loco todos os entretantos, chegou-se ao balcão de marcação de consultas e cortou o primeiro da fila:
- Com licença, sou fiscal - e, para a balconista: - Preciso de algumas informações.
- Pois não. O senhor queira aguardar sua vez na fila.
- Sou o fiscal do INAMPS.
- Está bem, mas aguarde na fila.
- Você não me entendeu!
- Sra. Mesmo sendo fiscal, o senhor precisa aguardar na fila.
Furioso, o fiscal escreveu um relatório a quem de direito solicitando a imediata demissão da moça, que, por sua vez, para surpresa do fiscal, explicou-se administrativamente, através de carta:
"A cada dia, no exercício de minhas funções, agendo conszultas para diversos especialistas, inclusive psiquiatras. Em minha rotina diária atendo todo tipo de gente importante: o presidente da república, o prefeito, Jesus Cristo, Bill Clinton, e, é claro, fiscais do INAMPS."

terça-feira, março 22, 2005

Hoje é seu dia de sorte!

Conta-se que, em Bagdá, os invejosos murmuravam:
Por que Aladim julga ser melhor do que nós? Ele é rico, casou-se com a filha do sultão, tem uma lâmpada maravilhosa... Pura sorte!
Até os ministros conspiravam:
Eu também, se tivesse um gênio a me servir...
Ora, Aladim resolveu fazer uma experiência e chamou o sultão e o grão-vizir como testemunhas. Esconderam-se em uma das curvas da estrada que ia para Bagdá e Aladim ordenou ao gênio:
Você vai conceder um desejo a cada pessoa que passar por esta estrada.
Logo passou o primeiro homem e o gênio apresentou-se:
Bom dia! Hoje é seu dia de sorte! Vou realizar um desejo seu.
Não me venha com brincadeiras! – o homem empurrou o gênio, zangado, e seguiu seu caminho.
O segundo a passar respondeu a rir:
Prove que você é um gênio. Faça aparecer em minhas mãos uma cesta de deliciosos figos.
Você já fez um pedido – o gênio desapareceu deixando o rapaz com uma cesta de figos nas mãos.
Mais tarde passou por ali uma jovem recém casada que desejava fazer uma bela viagem com seu amado marido e pediu:
Quero duzentas moedas de ouro!
O gênio suspirou.
Da cidade surgiu correndo uma velha a gritar:
Senhora, seu marido faleceu, mas deixou-lhe um seguro de vida no valor de duzentas moedas de ouro.
E o dia prosseguiu assim. As pessoas passavam e o gênio oferecia-se para realizar um pedido. Ao pôr-do-sol passou por ali um cego, que ao nascer fora abandonado na porta da mesquita e que vivia de esmolas.
Boa tarde! Hoje é seu dia de sorte! Sou um gênio e vou realizar um pedido seu. Um só.
O cego sorriu, pensou, pensou, e por fim decidiu:
Gênio, quero ver minha bela esposa e meus filhos passeando no jardim de minha mansão.
Alá seja louvado! – exclamou o sultão – Um homem assim inteligente deve ser meu conselheiro.
Um homem assim esperto eu quero para genro! – afirmou o grão-vizir.
E assim aconteceu.
Quando esta estória espalhou-se em Bagdá, o povo compreendeu que um gênio só é útil para quem sabe pedir.
Aladim, satisfeito, mandou esculpir nos muros de seu palácio os seguintes dizeres:
“A sorte de cada um depende de suas escolhas.”


esta estória, da autoria de Sonia Rodrigues, ganhou o primeiro prêmio no Concurso Estórias Infantis do jornal "A Tribuna", Santos, em 2004

Alegria de ler

O que você lê para seu filho?

Sonia Rodrigues
Do livro: O que você diz a seu filho? – ESPA ED. - 1999


Você já reparou como as crianças ficam fascinadas pela história de Chapéuzinho Vermelho? Você começa a contar a respeito de uma garotinha que morava próximo a uma floresta e tinha um chapéuzinho vermelho e a criança parece estar meio distraída quando, de repente, algo muito importante acontece, algo tão importante que a criança até pára de respirar, abre bem os olhos e pergunta ansiosamente ‘e aí, o que aconteceu?’. Pois Chapéuzinho Vermelho... desobedeceu à mamãe!
Chapéuzinho Vermelho fez algo tremendamente perigoso e com certeza vai se dar mal. E agora? É neste momento que a criança se identifica com a história, e passa a ser, ela mesma, a Chapéuzinho Vermelho, a menininha que desobedeceu à mamãe. Toda criança sente vontade de desobedecer à mamãe!
Outro tipo de história apreciado pelas crianças é do ciclo do tolo: um rei possui algo maravilhoso, uma fonte que canta ou uma árvore que dá frutos de ouro, a por algum motivo misterioso, a fonte pára de jorrar ou a árvore perde seus frutos. Os filhos mais velhos falham em resolver o problema e então o caçula pede para tentar, porém o rei não lhe dá atenção porque o considera tolo.
E neste instante captamos totalmente a atenção dos pequenos, pois a criança com freqüência sente que os adultos não dão importância ao que ela fala, pois a consideram muito tola!
As histórias de fadas, na realidade, não estão falando sobre florestas e castelos com objetos encantados, estão falando sobre acontecimentos muito mais importantes do universo infantil: o que acontece com quem desobedece à mamãe? O que fazer quando todos o consideram um tolo?
É freqüente as crianças se defrontarem com complicados problemas morais ao fazerem coisas sem nenhuma maldade: abrir uma mala, espiar dentro de uma gaveta, só por curiosidade e pronto! O que parecia inocente de repente se transforma em um drama, pois ela descobriu uma foto comprometedora, uma carta de amor, um revólver... e agora? Se contar brigarão com ela e alguém que ela ama poderá ficar em má situação; se não contar o peso do segredo a esmagará. Culpa, medo, angústia, decepção, sentimentos de impotência são esmagadoras conseqüências do que a princípio parecia só mais uma travessura.
Os contos de fadas consolam as crianças e lhes dão pistas do que fazer quando se defrontam com estes complicados princípios morais.
A Caixa de Pandora é um mito particularmente útil para alertar crianças de qualquer idade contra os perigos da curiosidade descontrolada. Com poucas exceções, como este e o do rei Minos, os mitos são inadequados para as crianças, pois falam sobre o dever, moldam o Super Ego, seu desfecho é trágico, punitivo, definitivo. Os mitos são emocionalmente perturbadores, pois não oferecem esperança, servem para inculcar a noção de dever e de submissão aos poderes maiores desta vida.
Um alerta: há bons motivos para a violência e a morte nos contos de fadas. Lembre-se de que os personagens destes contos são meros símbolos. Quando o Lobo Mau ou a Bruxa Malvada morrem, é o Mal que desaparece. E se você resolve modificar a história para que ela fique sem violência, e dá apenas umas palmadas no bumbum do Lobo, e foge da bruxa, você deixou o Mal à solta no mundo! A sensação de segurança que a história dá à criança porque o Mal foi destruído acabou-se! Quando um herói morre, como no caso de Os Tres Porquinhos, há um bom motivo para isso. Morrer significa crescer, evoluir, o fim de um ciclo de existência. O porquinho, que era bobinho, morre, quer dizer, cresce, pois surge o segundo porquinho, depois o terceiro, que finalmente atinge a maturidade e é capaz de construir uma casa de tijolos. Se você, como fez Wal Disney, deixa vivos os dois porquinhos tolos, acaba com a mensagem de crescimento e evolução certa, embutida na história! Confie na sabedoria popular. Para haver justiça no mundo infantil, os maus devem morrer, os tolos também e o Bem deve triunfar magnificamente.

Há outros fatores a serem considerados nos contos de fadas:
· são obras de arte, e estimulam o gosto pela literatura.
· aumentam o vocabulário da criança, por colocá-la em contato com palavras que ela não ouve no seu dia a dia: arauto, palácio, carruagem etc
· ampliam a visão de mundo da criança, colocando-a em contato com costumes de outros povos e outras épocas históricas
· a atenção carinhosa do contador de histórias proporciona momentos gratificantes de intimidade, aproxima gerações e dá segurança emocional à criança
· estimula a imaginação, a fantasia

Ofereça-se a oportunidade de compartilhar momentos mágicos de alegria com seus filhos!