segunda-feira, dezembro 27, 2010

Justiça

O filho do ministro estava parado na calçada esperando pelo sinal verde, quando alguns rapazes pobres se aproximaram: dois derramaram álcool em suas vestes e o terceiro acendeu um fósforo.
Apesar de ser socorrido em seguida, o filho do ministro morreu. Um de seus agressores foi libertado assim que se descobriu que ele era de menor, sendo portanto juridicamente incapaz. Os demais não foram a júri popular, pegaram uma pena branda por serem réus primários e porque explicaram tratar-se apenas de uma brincadeirinha.
O ministro, inconformado, desabafou sua revolta com a juíza e um amigo desembargador:
- Pena de morte é pouco para estes assassinos!
O desembargador explicou ao amigo que o termo era inadequado, pois não houvera intenção de matar: todo mundo sabe que o fogo queima, mas não mata.
O ministro engasgou-se, a juíza exlamou:
- Há, inclusive, jurisprudência. Há algum tempo atrás, um índio pataxó... o ministro lembra, pois o seu filho esteve envolvido. O caso registrou o precedente: atear fogo em gente não é homicídio, nem doloso, nem culposo.
O ministro arroxeou:
- O índio morreu contra a lei – afirmou o desembargador – Se o fogo não mata... Diga-se o mesmo das vítimas do Andraus e do Joelma, morreram todos contra a lei, por desconhecerem que o fogo não mata.
- A propósito – comentou a juíza – até estudamos a possibilidade de ordenar a ressuscitação imediata de toda esta gente, pensamos em enviar uma intimação ao plano astral através de um médium, mas este nos explicou que muitos desencarnados já renasceram, alguns no Canadá, outros na Austrália, outros até fora do sistema solar, em mundos paradisíacos, e seria muito complicado trazê-los de volta.
- Mas o ministro não se preocupe – continuou o desembargador – casos como este não tornarão a se repetir. Está sendo estudado um projeto de lei que retira o extintor obrigatório, substituindo-o pelo aviso: “Em caso de incêndio, lembre-se: o fogo não mata”.
O ministro, lívido, levantou-se.
- Ah, ministro, antes que sais, um aviso: há muitos índios em Brasília passeando com arcos e flechas. Eles me esclareceram que vieram em busca de diversão. Uma brincadeirinha típica da tribo, acertar no alvo.
- Como?
- Ora, não há com o que se preocupar. Os índios garantiram: flecha fura, mas não mata.

O clone

A solução, afinal!

Dizem que, em Santos, são 24 mil a mais. Em alguns lugares, consegue ser pior, chegando a cinqüenta por cento o número de mulheres na população.
Para onde quer que se olhe, há mulheres. As universidades estão inflacionadas de mulheres. Os bancos, a mídia, até locais tradicionalmente masculinos como associações de escritores e estádios de futebol vão, aos poucos, se locupletando de mulheres.
Ouvi dizer, a boca pequena, que ao Grão-Mestre da Maçonaria foi sugerida a conveniência de recolocar a figura da Deusa acima do Grande Arquiteto do Universo e a abertura do Templo às fêmeas da espécie.
O certo é que a solução apareceu.
Alegrem-se, mulheres! Chegou o clone! Todos os nossos problemas existenciais se acabaram.
Sem par para sábado `a noite? Que tal um clone do Tom Cruise, do Cláudio Heinrich ou do Marcelo Antony? Você poderá escolher entre bons dançarinos, gourmets, esportistas, intelectuais, tímidos ou garanhões. Homens para todos os paladares. Dos catorze aos oitenta anos haverá um amplo leque de escolhas, de Bruno de Luca a Mário Lago.
Se você acha que estou exagerando, acompanhe a filha adolescente à boate ou à praia e constate: até mesmo para a deslumbrante Todo-poderosa com tudo em cima perfeita em todos os detalhes não está fácil arrumar um homem.
É claro, deverá haver severas normas a serem obedecidas para a clonagem:
Regra n º 1 - Com exceção de Madre Teresa de Calcutá (cujos clones deverão ser recomendados a todos os governos do planeta), nenhuma mulher poderá ser clonada.
Regra n º 2 -Será terminantemente proibida a clonagem de panacas, fubangas, malas sem alça e chatos de todos os tipos.
Regra n º 3 - Sob hipótese nenhuma serão clonados tipos nocivos à sociedade, tais como políticos, economistas e sociólogos com pretensões à presidência da República.
§único – A violação da regra 3 será considerada crime hediondo e punida com a morte sob tortura iroquesa.
Como? Alguém ousa levantar a voz contra a clonagem? Reflitam, mulheres!
O excesso populacional feminino é, há muito, conhecido, e alguns povos resolveram o problema muito praticamente através do genocídio de recém-nascidas. Será que adotaremos este método bárbaro? Há outras soluções igualmente extremistas – comunidades gays ou cavernas para eremitas, cuja falta de conforto ou calor humano não me atraem nem um pouquinho.
Recuso a priori a solução árabe – o harém – pois, com meu sangue latino, sou ciumenta, possessiva, exclusivista e não tenho alma de escrava. No meu pedaço mando eu!
Mulheres, à luta!
Mobilizemo-nos a favor da clonagem.
Vivam os homens! Na falta de um original, viva o clone!
Se necessário for, conquistaremos o poder! Mudaremos as leis! E modificaremos até o Livro Sagrado, pois, do jeito que as coisas vão, com esta escassez de homens, para a grande maioria das mulheres a verdade é:
“...ainda que eu tenha o dom da profecia, ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver um clone, nada serei.”

Se eu tivesse visto...

A Dra. Cristina já colocara as luvas e pegara a seringa com adrenalina quando a porta abriu-se, e o homem entrou revólver em punho. ‘Vou morrer’, pensou a médica.
A coisa toda não demorou vinte segundos. O Dr. Maurício atravessou a sala, empurrou o homem para fora, fechou a porta com a chave e voltou a conectar os eletrodos do eletrocardiograma. As outras três pessoas na sala de emergência olharam-no como herói.
A linha horizontal no monitor pedia urgência. O paciente na maca recebera um choque elétrico e estava em parada cardiorrespiratória.
Caio voltou a insuflar o ambu. Cida fixou o escalpe para o soro na veia do antebraço. Cristina aplicou a adrenalina intracardíaca e Maurício anunciou:
- Ritmo sinusal, sessenta por minuto. Conseguimos.
O ambiente silencioso pesava. Os rostos demonstravam medo. Nada das piadas e gracejos usuais para quebrar a tensão. Somente Maurício agia normalmente.
- O paciente está pronto para a UTI, pessoal. Que é que a com vocês? Por que ninguém se mexe? Abram esta porta!
Lá fora ouviam-se gritos, ruídos de luta, agitação.
Caio gaguejou:
- É que... é que... é que...
Já Cida suspirou, escorregando a o longo da parede:
-Ai, doutor...
Maurício amparou Cida, deitou-a no chão, verificou a pressão e chegou-lhe um ‘flor de maçã’ ao nariz para reanimá-la. Lá fora a confusão acalmara. E como ninguém ousasse sair do lugar, o próprio Maurício abriu a porta e empurrou a maca rumo à UTI, arrastando Cristina consigo:
- Vamos com isso.
Pelo corredor, agora anormalmente silencioso e deserto, os dois dirigiram-se à UTI, onde entregaram o paciente e seguiram para tomar um merecido café.
Cida e Caio já estavam na copa. Caio comentou:
- Era o irmão mais moço quem entrou na sala, fez a maior confusão na recepção até que os policiais os levaram para a delegacia. Ficou gritando que os médicos iam matar o irmão dele. Cada louco que nos aparece...
Cida agradeceu:
- Mas que sangue-frio, Dr. Maurício! Como o senhor foi corajoso!
E Cristina acrescentou:
- Eu pensei que ia morrer. Se não fosse você...
Maurício olhou intrigado de um rosto para outro:
- Do que vocês estão falando, afinal?
- O senhor enfrentou o homem!
- Claro! Ele ia atrapalhar, contaminar o campo, podia desmaiar lá dentro, pegar algum material, sabe-se lá o que mais...
- Maurício, você não viu o revólver?
- Revólver?
- Doutor, o homem estava armado!!! Ele apontou a arma para o seu peito e o senhor nem se abalou!
Maurício fica de repente muito pálido e murmura, antes de escorregar ao longo da parede, desmaiando:
- Se eu tivesse visto o revolver, não teria saído do lugar!

(publicado na revista Movimento nº 4 – ano VIII, do laboratório Novartis, em 1998

Madrugada

- Socoooooooooooooorro!
Ao farfalhar das copas da árvore, enquanto o homem subia rapidamente, seguiu-se o som possante das patas da fera sobre o tronco – PAM!
Em meu sonho, a floresta estava envolta em espessa neblina. Sobressaltado, espiei. A luz do sol nascente projetava paralelos riscos vermelhos por entre as frestas da janela. O traque-traque monótono do despertador casava-se ao som distante dos primeiros ônibus lá na avenida.
Aguardei os sons familiares – o estalar do trinco do portão, o tilintar dos vidros de leite, o dilacerar do pão ao ser espetado no prego do batente da porta de entrada – inútil insistir com o moleque Erasmo para que colocasse a ‘bengala’ no suporte apropriado, junto com o leite – ele invariavelmente respondia que assim, no prego, ‘era mais seguro’ (?!). }O jeito era conformar-se em perder, diariamente, uma fatia do pão.
- Ai, meu Deus! Ai, minha Nossa Senhora! – gemidos e soluços, ruídos de folhas a roçar ... que sonho tão nítido!
- Socooooorro!
Sentei-me, totalmente desperto. O grito soara muito próximo. Acendi a luz e vasculhei o quarto com o olhar. Vazio. E no entanto... aquela respiração entrecortada no meu ouvido esquerdo!
- Acudam!
Não era possível! Como alguém poderia estar tão próximo à janela, sem balcão nem gelosia?
A seguir, um choro, de cortar o coração.
Abri a janela, intrigada.
À minha frente, o moleque Erasmo, camisa rasgada, sapato em apenas um dos pés, de cabeça para baixo como um bicho preguiça, oscilava perigosamente nos galhos frágeis da ameixeira.
O pão matinal, lá embaixo, sujo de terra, fora estraçalhado pelo cão, que eu esquecera de prender.

Intertextualidade

Há momentos em que a solidão nos pesa, momentos à Manoel Bandeira:
‘... e quando de noite me der / vontade de me matar / vou-me embora pra Pasárgada.’
Há momentos em que a solidão nos enriquece, momentos à Cecília Meireles:
‘... caminho sozinha pela tarde, mas a tarde é minha.’
Há momentos zen, momentos à John Magee:
‘...sobre as nuvens, com as mãos estendidas, toca-se a face de Deus.’
Há momentos eternos, momentos à Drummond, em que a vida se impõe a nós:
‘...a vida, apenas, sem mistificações.’

Anúncio pessoal

Oportunidade! Somente hoje!
(motivo: sou de Gêmeos, amanhã provavelmente terei mudado de idéia e partido para uma excursão ao Ártico, sem deixar endereço)
Posso ser conquistada por um conversador brilhante que tenha à mão um comentário inteligente para qualquer assunto, do paleolítico ao Hubble ou por um jogador de xadrez apenas razoável, que é para eu poder ganhar algumas vezes.
Procuro alguém ‘do dia’, que aprecie o nascer do sol, os almoços, os encontros de fim de tarde, pois após as dez da noite minha atividade preferida é dormir, no sentido literal do termo, que para isso é que foi feita a noite.
Faço questão de que o meu homem tenho boa aparência, que se cuide, que não tenha a barriguinha denunciadora do chope nosso de cada dia. Não precisa ser nenhum Tom Cruise, aliás meu ator favorito é mesmo o Al Paccino – feio, baixinho, parece insignificante, mas esbanja talento e autoconfiança.
Sendo uma mulher tradicional, procuro um homem que seja mais velho, mais alto, e, se possível, mais sábio. (não precisa conhecer mitologia a fundo, porém é desejável que saiba o nome dos deuses do Olimpo)
Sou sofisticada. Não me venha de chinelos, convidando para um sanduíche em algum quiosque, ou conhecerá o meu talento para o desaparecimento imediato e definitivo.
Meu desejo é o de todas as mulheres: compromisso. Se você encontrar por aí alguma com um discurso diferente, fique esperto! Experimente dar-lhe um solitário e observe que o brilho em seus olhos não PE pelo ‘um diamante’, é pelo ‘para sempre’.
Respostas corajosas, bem humoradas e criativas podem ser enviadas aos cuidados da redação.
A resposta mais charmosa será publicada no próximo número, a não ser que a autora se encante com o missivista, caso em que este corre o risco de tornar-se um autor anônimo, para sempre desconhecido do grande público.