segunda-feira, dezembro 27, 2010

Justiça

O filho do ministro estava parado na calçada esperando pelo sinal verde, quando alguns rapazes pobres se aproximaram: dois derramaram álcool em suas vestes e o terceiro acendeu um fósforo.
Apesar de ser socorrido em seguida, o filho do ministro morreu. Um de seus agressores foi libertado assim que se descobriu que ele era de menor, sendo portanto juridicamente incapaz. Os demais não foram a júri popular, pegaram uma pena branda por serem réus primários e porque explicaram tratar-se apenas de uma brincadeirinha.
O ministro, inconformado, desabafou sua revolta com a juíza e um amigo desembargador:
- Pena de morte é pouco para estes assassinos!
O desembargador explicou ao amigo que o termo era inadequado, pois não houvera intenção de matar: todo mundo sabe que o fogo queima, mas não mata.
O ministro engasgou-se, a juíza exlamou:
- Há, inclusive, jurisprudência. Há algum tempo atrás, um índio pataxó... o ministro lembra, pois o seu filho esteve envolvido. O caso registrou o precedente: atear fogo em gente não é homicídio, nem doloso, nem culposo.
O ministro arroxeou:
- O índio morreu contra a lei – afirmou o desembargador – Se o fogo não mata... Diga-se o mesmo das vítimas do Andraus e do Joelma, morreram todos contra a lei, por desconhecerem que o fogo não mata.
- A propósito – comentou a juíza – até estudamos a possibilidade de ordenar a ressuscitação imediata de toda esta gente, pensamos em enviar uma intimação ao plano astral através de um médium, mas este nos explicou que muitos desencarnados já renasceram, alguns no Canadá, outros na Austrália, outros até fora do sistema solar, em mundos paradisíacos, e seria muito complicado trazê-los de volta.
- Mas o ministro não se preocupe – continuou o desembargador – casos como este não tornarão a se repetir. Está sendo estudado um projeto de lei que retira o extintor obrigatório, substituindo-o pelo aviso: “Em caso de incêndio, lembre-se: o fogo não mata”.
O ministro, lívido, levantou-se.
- Ah, ministro, antes que sais, um aviso: há muitos índios em Brasília passeando com arcos e flechas. Eles me esclareceram que vieram em busca de diversão. Uma brincadeirinha típica da tribo, acertar no alvo.
- Como?
- Ora, não há com o que se preocupar. Os índios garantiram: flecha fura, mas não mata.

O clone

A solução, afinal!

Dizem que, em Santos, são 24 mil a mais. Em alguns lugares, consegue ser pior, chegando a cinqüenta por cento o número de mulheres na população.
Para onde quer que se olhe, há mulheres. As universidades estão inflacionadas de mulheres. Os bancos, a mídia, até locais tradicionalmente masculinos como associações de escritores e estádios de futebol vão, aos poucos, se locupletando de mulheres.
Ouvi dizer, a boca pequena, que ao Grão-Mestre da Maçonaria foi sugerida a conveniência de recolocar a figura da Deusa acima do Grande Arquiteto do Universo e a abertura do Templo às fêmeas da espécie.
O certo é que a solução apareceu.
Alegrem-se, mulheres! Chegou o clone! Todos os nossos problemas existenciais se acabaram.
Sem par para sábado `a noite? Que tal um clone do Tom Cruise, do Cláudio Heinrich ou do Marcelo Antony? Você poderá escolher entre bons dançarinos, gourmets, esportistas, intelectuais, tímidos ou garanhões. Homens para todos os paladares. Dos catorze aos oitenta anos haverá um amplo leque de escolhas, de Bruno de Luca a Mário Lago.
Se você acha que estou exagerando, acompanhe a filha adolescente à boate ou à praia e constate: até mesmo para a deslumbrante Todo-poderosa com tudo em cima perfeita em todos os detalhes não está fácil arrumar um homem.
É claro, deverá haver severas normas a serem obedecidas para a clonagem:
Regra n º 1 - Com exceção de Madre Teresa de Calcutá (cujos clones deverão ser recomendados a todos os governos do planeta), nenhuma mulher poderá ser clonada.
Regra n º 2 -Será terminantemente proibida a clonagem de panacas, fubangas, malas sem alça e chatos de todos os tipos.
Regra n º 3 - Sob hipótese nenhuma serão clonados tipos nocivos à sociedade, tais como políticos, economistas e sociólogos com pretensões à presidência da República.
§único – A violação da regra 3 será considerada crime hediondo e punida com a morte sob tortura iroquesa.
Como? Alguém ousa levantar a voz contra a clonagem? Reflitam, mulheres!
O excesso populacional feminino é, há muito, conhecido, e alguns povos resolveram o problema muito praticamente através do genocídio de recém-nascidas. Será que adotaremos este método bárbaro? Há outras soluções igualmente extremistas – comunidades gays ou cavernas para eremitas, cuja falta de conforto ou calor humano não me atraem nem um pouquinho.
Recuso a priori a solução árabe – o harém – pois, com meu sangue latino, sou ciumenta, possessiva, exclusivista e não tenho alma de escrava. No meu pedaço mando eu!
Mulheres, à luta!
Mobilizemo-nos a favor da clonagem.
Vivam os homens! Na falta de um original, viva o clone!
Se necessário for, conquistaremos o poder! Mudaremos as leis! E modificaremos até o Livro Sagrado, pois, do jeito que as coisas vão, com esta escassez de homens, para a grande maioria das mulheres a verdade é:
“...ainda que eu tenha o dom da profecia, ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se não tiver um clone, nada serei.”

Se eu tivesse visto...

A Dra. Cristina já colocara as luvas e pegara a seringa com adrenalina quando a porta abriu-se, e o homem entrou revólver em punho. ‘Vou morrer’, pensou a médica.
A coisa toda não demorou vinte segundos. O Dr. Maurício atravessou a sala, empurrou o homem para fora, fechou a porta com a chave e voltou a conectar os eletrodos do eletrocardiograma. As outras três pessoas na sala de emergência olharam-no como herói.
A linha horizontal no monitor pedia urgência. O paciente na maca recebera um choque elétrico e estava em parada cardiorrespiratória.
Caio voltou a insuflar o ambu. Cida fixou o escalpe para o soro na veia do antebraço. Cristina aplicou a adrenalina intracardíaca e Maurício anunciou:
- Ritmo sinusal, sessenta por minuto. Conseguimos.
O ambiente silencioso pesava. Os rostos demonstravam medo. Nada das piadas e gracejos usuais para quebrar a tensão. Somente Maurício agia normalmente.
- O paciente está pronto para a UTI, pessoal. Que é que a com vocês? Por que ninguém se mexe? Abram esta porta!
Lá fora ouviam-se gritos, ruídos de luta, agitação.
Caio gaguejou:
- É que... é que... é que...
Já Cida suspirou, escorregando a o longo da parede:
-Ai, doutor...
Maurício amparou Cida, deitou-a no chão, verificou a pressão e chegou-lhe um ‘flor de maçã’ ao nariz para reanimá-la. Lá fora a confusão acalmara. E como ninguém ousasse sair do lugar, o próprio Maurício abriu a porta e empurrou a maca rumo à UTI, arrastando Cristina consigo:
- Vamos com isso.
Pelo corredor, agora anormalmente silencioso e deserto, os dois dirigiram-se à UTI, onde entregaram o paciente e seguiram para tomar um merecido café.
Cida e Caio já estavam na copa. Caio comentou:
- Era o irmão mais moço quem entrou na sala, fez a maior confusão na recepção até que os policiais os levaram para a delegacia. Ficou gritando que os médicos iam matar o irmão dele. Cada louco que nos aparece...
Cida agradeceu:
- Mas que sangue-frio, Dr. Maurício! Como o senhor foi corajoso!
E Cristina acrescentou:
- Eu pensei que ia morrer. Se não fosse você...
Maurício olhou intrigado de um rosto para outro:
- Do que vocês estão falando, afinal?
- O senhor enfrentou o homem!
- Claro! Ele ia atrapalhar, contaminar o campo, podia desmaiar lá dentro, pegar algum material, sabe-se lá o que mais...
- Maurício, você não viu o revólver?
- Revólver?
- Doutor, o homem estava armado!!! Ele apontou a arma para o seu peito e o senhor nem se abalou!
Maurício fica de repente muito pálido e murmura, antes de escorregar ao longo da parede, desmaiando:
- Se eu tivesse visto o revolver, não teria saído do lugar!

(publicado na revista Movimento nº 4 – ano VIII, do laboratório Novartis, em 1998

Madrugada

- Socoooooooooooooorro!
Ao farfalhar das copas da árvore, enquanto o homem subia rapidamente, seguiu-se o som possante das patas da fera sobre o tronco – PAM!
Em meu sonho, a floresta estava envolta em espessa neblina. Sobressaltado, espiei. A luz do sol nascente projetava paralelos riscos vermelhos por entre as frestas da janela. O traque-traque monótono do despertador casava-se ao som distante dos primeiros ônibus lá na avenida.
Aguardei os sons familiares – o estalar do trinco do portão, o tilintar dos vidros de leite, o dilacerar do pão ao ser espetado no prego do batente da porta de entrada – inútil insistir com o moleque Erasmo para que colocasse a ‘bengala’ no suporte apropriado, junto com o leite – ele invariavelmente respondia que assim, no prego, ‘era mais seguro’ (?!). }O jeito era conformar-se em perder, diariamente, uma fatia do pão.
- Ai, meu Deus! Ai, minha Nossa Senhora! – gemidos e soluços, ruídos de folhas a roçar ... que sonho tão nítido!
- Socooooorro!
Sentei-me, totalmente desperto. O grito soara muito próximo. Acendi a luz e vasculhei o quarto com o olhar. Vazio. E no entanto... aquela respiração entrecortada no meu ouvido esquerdo!
- Acudam!
Não era possível! Como alguém poderia estar tão próximo à janela, sem balcão nem gelosia?
A seguir, um choro, de cortar o coração.
Abri a janela, intrigada.
À minha frente, o moleque Erasmo, camisa rasgada, sapato em apenas um dos pés, de cabeça para baixo como um bicho preguiça, oscilava perigosamente nos galhos frágeis da ameixeira.
O pão matinal, lá embaixo, sujo de terra, fora estraçalhado pelo cão, que eu esquecera de prender.

Intertextualidade

Há momentos em que a solidão nos pesa, momentos à Manoel Bandeira:
‘... e quando de noite me der / vontade de me matar / vou-me embora pra Pasárgada.’
Há momentos em que a solidão nos enriquece, momentos à Cecília Meireles:
‘... caminho sozinha pela tarde, mas a tarde é minha.’
Há momentos zen, momentos à John Magee:
‘...sobre as nuvens, com as mãos estendidas, toca-se a face de Deus.’
Há momentos eternos, momentos à Drummond, em que a vida se impõe a nós:
‘...a vida, apenas, sem mistificações.’

Anúncio pessoal

Oportunidade! Somente hoje!
(motivo: sou de Gêmeos, amanhã provavelmente terei mudado de idéia e partido para uma excursão ao Ártico, sem deixar endereço)
Posso ser conquistada por um conversador brilhante que tenha à mão um comentário inteligente para qualquer assunto, do paleolítico ao Hubble ou por um jogador de xadrez apenas razoável, que é para eu poder ganhar algumas vezes.
Procuro alguém ‘do dia’, que aprecie o nascer do sol, os almoços, os encontros de fim de tarde, pois após as dez da noite minha atividade preferida é dormir, no sentido literal do termo, que para isso é que foi feita a noite.
Faço questão de que o meu homem tenho boa aparência, que se cuide, que não tenha a barriguinha denunciadora do chope nosso de cada dia. Não precisa ser nenhum Tom Cruise, aliás meu ator favorito é mesmo o Al Paccino – feio, baixinho, parece insignificante, mas esbanja talento e autoconfiança.
Sendo uma mulher tradicional, procuro um homem que seja mais velho, mais alto, e, se possível, mais sábio. (não precisa conhecer mitologia a fundo, porém é desejável que saiba o nome dos deuses do Olimpo)
Sou sofisticada. Não me venha de chinelos, convidando para um sanduíche em algum quiosque, ou conhecerá o meu talento para o desaparecimento imediato e definitivo.
Meu desejo é o de todas as mulheres: compromisso. Se você encontrar por aí alguma com um discurso diferente, fique esperto! Experimente dar-lhe um solitário e observe que o brilho em seus olhos não PE pelo ‘um diamante’, é pelo ‘para sempre’.
Respostas corajosas, bem humoradas e criativas podem ser enviadas aos cuidados da redação.
A resposta mais charmosa será publicada no próximo número, a não ser que a autora se encante com o missivista, caso em que este corre o risco de tornar-se um autor anônimo, para sempre desconhecido do grande público.

domingo, novembro 28, 2010

Computador de arqueólogo.

O computador de meu trabalho é egípcio, creio, pois em sua barra, na área de trabalho, só há hieróglifos. Para começar, o olho de Hórus, que revela o numero IP de minha máquina. Ao lado, uma tábua de passar roupa com um gorro verde na ponta – ou será uma língua lambendo um confeito verde? – ao lado de um reco-reco, ou talvez seja um ralador de legumes, que não tenho a menor idéia do que representa.
Vem a seguir um escafandrista ferido - pois exibe uma ponta vermelha para fora do visor, como sangue ou labareda, e a miniatura que parece o robozinho simpático do filme Guerra nas Estrelas, na sequência.
Completa a minha particular pedra de Roseta uma xícara de chá fumegante que descubro representar o tal do JAVA.
Chamo o helpdesk, que, para meu espanto, pede o numero IP, que, por que motivo eu não sei, está estampado em letras enormes na tela de abertura, tornando o olho de Horus redundante.
Diante desta barra de trabalho tão inútil, sorrio, pois, apesar de, ou por causa de sua aparência exótica, ela é bem bonitinha.

domingo, agosto 29, 2010

Algumas histórias de uma casa feliz


Introdução

A casa estava ás escuras. Pela janela aberta, no crepúsculo da tarde, a paisagem chuvosa esfumaçava-se em um degradée de tons cinzentos – mar, céu, nuvens, areia.
Silêncio.
As duas moças avançaram silenciosamente escada acima. Em breve ouviram a voz da mae, a gesticular, entre sussurros e suspiros.
Catarina acendeu a luz. Carolina censurou:
De novo, mamãe, falando sozinha!
A senhora sorriu, murmurando:
Quem disse que estou sozinha, querida? Estou aqui conversando com meu passado... com meus mortos queridos... meus fantasminhas... – piscou um olho, para que a filha percebesse que estava a brincar, não fossem pensar que a mãe delirasse, - Esta casa está tão cheia de lembranças....
As moças, ao mesmo tempo:
- É verdade, lembra daquela vez...
Risos.
Eram boas lembranças.




Histórias de crianças


Sentadinha na janela

Mãe de primeira viagem leva cada susto!
Lúcia estava a varrer flores no jardim quando levantou os olhos e o coração congelou de pavor. Na janela do andar de cima, a pequenina Catarina, de dois anos balançava os pezinhos.
Silenciosamente, pois, se gritasse, a garotinha poderia assutar-se e cair, Lúcia subiu as escadas com lágrimas nos olhos, aproximou-se por trás da filha e abraçou-a, retirando-a carinhosamente do parapeito.
Piu piu! – apontou a pequenina.
Ah, os passarinhos – Lúcia ria como louca – Vamos ver os passarinhos lá no jardim, ao lado da mamãe,
Abaixou a vidraça – ela sempre deixava as vidraças arriadas, quem tem criança nunca pode descuidar de nada. Esquecera uma vez....e a pequenina, muito esperta, empurrara um banco até a parede para alcançar a janela.
Na mesma tarde, Lúcia providenciou a colocação de grades em todas as janelas da casa.
Na semana seguinte, Lúcia estava a varrer folhas no jardim, quando levantou os olhos e o coração bateu forte. Na janela do andar de cima, a garotiinha subia pela grade como uma aranham, jogando beijos para a mamãe lá embaixo....
Um minuto de descuido

Mãe não pode mesmo distrair-se.
E nem fora distração e ,sim, pressa.
Lúcia correra a recolher a roupa do varal, que verão em Santos é assim: o céu de cartão postal fica preto de repente e a tempestade cai antes mesmo do primeiro trovão; depois a chuvarada pára tão subitamente quanto começou, deixando ruas alagadas, pessoas encharcadas e varais ensopados. Ora, ao ouvir o trovão, Lúcia saiu da copa; ao retornar, não viu a filha, ouviu apenas sua voz alegre a exclamar:
Areia! Areia! – a pequenina pronunciava ‘aeia’
Uma nuvem de pó claro espalhava-se pelo ar. Um monte de pó, no chão, em frente à menininha, que sorria para a mãe na maior alegria, a brincar:
Paia! Painha! – ou seja praia, prainha...
Leite em pó. Lúcia deixara a lata aberta sobre a mesa e a menina a derrubara.
E Lúcia ficou entre o riso e as lágrimas. A cena era inesperada e engraçada, mas o trabalhão que teria para limpar a filha, o chão, a mesa....
E por enquanto era apenas uma, logo seriam duas...

Nova luz em nossas vidas

Catarina correu para a mãe, saudosa, e deu um passo atrás ao perceber o novo bebê. Ficou sem fala e sem ar.
Lúcia colocou Carolina no berço e pegou Catarina ao colo. Ficara pela primeira vez longe da filha, quase um dia inteiro. Começou a lembrar a menina das conversas dos últimos meses sobre a irmãzinha que chegara. A angustiada Catarina interrompeu:
Você não é mais minha mamãe?
Claro que sou sua mamãe, querida, e sou mamãe da Carolina também.
Catarina pulou do colo de Lúcia e correu para o colo do pa:
Mas o papai é meu!
Papai explicou:
Sou seu papai e papai da Carolina também.
Com os olhos vermelhos de lagrimas, a garotinha procurou pelo avô, a cujo pescoço agarrou-se a soluçar em desespero:
Mas o vovô é meu. Só meu, só meu, só meu.
Ah, o sofrimento infantil!
A voz forte do avô fez-se presente:
Vovô é só seu!
Como é que ele ia escapar desta afirmação desastrada era uma tarefa que ia mantê-lo ocupado pelos próximos anos.

Leituras familiares

Família que lê unida permanece unida – exclamava papai, nas manhãs de domingo, estirado em sua cadeira preguiçosa.
Mais que um habito, ler nesta família era um verdadeiro vício, um vírus que contaminava a todos.
Algumas famílias tem em suas casas um salão de festas, um porão para jogos, uma área para churrascos. A família Rodrigues tinha uma biblioteca.
As historias começavam no berço, com as cantigas de ninar, em que barcos singravam os mares azuis em noites de luar e gaivotas percorriam os céus nas asas do vento, acalantos diferentes das convencionais canções de terror sobre bichos papões.
As primeiras papinhas eram ilustradas com as historias do avô, quando o avô era pequenininho e as histórias do tio Juca quando era um garotinho.
Uma borboleta que entrasse pela porta no momento da refeição virava personagem. O jardim foi o nascedouro das histórias da borboleta azul, bailarina vaidosa; da borboleta branca, desobediente, que o passarinho comeu quando se afastou da mamãe, da borboleta amarela que não comia e ficou doente, e até, quando mamãe descobriu um casulo em um dos vasos, e acompanharam seu crescimento até sua moradora sair em uma manhã ensolarada, a história da lagarta triste que não sabia que dentro dela escondia-se uma alma de borboleta.
Quando começavam a engatinhar, as meninas ganhavam livros coloridos com histórias de bichos. Catarina preferia as aventuras do elefante que passeava pela beira do rio, e pedia que lessem para ela a mesma historia centenas de vezes com prazer imenso. Certa tarde Lúcia encontrou a filha deitada no chão, dormindo sobre a barriga do pai adormecido, com o livro na mão.
Ao crescer, as meninas inventavam suas próprias histórias, como aquela do macaco que comeu uma banana cascada, invenção de Carolina que fez os pais racharem de rir. Para Carolina era tão claro que, se havia frutas descascadas, por força havia também de haver as cascadas....
E houve a noite em que Lúcia, exausta, sentou-se para adormecer as filhas com a história do momento, Branca de Neve e os sete anões, e, a certa altura, surpreendeu-se com os protestos das meninas:
Não, mamãe, não!
Sonolenta, ela esfregou os olhos, dando-se conta de que ferrara no sono, e escutou, com espanto, o que as meninas diziam:
Mamãe, a Branca de Neve não entrou no disco voador!


Direto do céu

O melhor da casa era o lado de fora.
Na sombra da varanda havia a rede para as tardes preguiçosas. No corredor para a garagem o tio fizera para elas dois balanços, e haja vaivém. No jardim havia todo tipo de bicho miúdo e de matinhos que viravam comidinha, colares, brincos e pulseiras.
Certa tarde Carolina viu qualquer coisa no telhado. Bem grande. E como a mãe não conseguia ver debaixo o que era, o jeito foi acionar a vizinha.
É uma águia, Dona Lúcia, mas não tem perigo, não, deve estar morta.
Na verdade, o telhado começava a encher-se de urubus.
Podemos ir aí ver?
Espiando da casa da vizinha, por sorte um pouco mais alta que a delas, lá estava o pobre do bicho caído entre a calha e a primeira fileira de telhas, abrindo o bico ameaçador para cada urubu que tentava aproximar-se.
Lúcia chamou os bombeiros.
É um pássaro bem grande, não sei dizer o que é, mas está vivo.
Para a criançada na rua, foi uma novidade quando o caminhão de bombeiros chegou, rodou a enorme escada, a ave foi laçada pelo pescoço e colhida em uma rede forte. Os bombeiros disseram que iam levar a ave a um veterinário.
Era um faisão, que, depois de medicado e tratado, foi devolvido à natureza.
Fizemos uma boa ação, meninas – disse mamãe. – Devemos cuidar da natureza. As aves de rapina estão em extinção e devem ser protegidas.
Bem, os urubus, que ficaram com fome, não devem concordar.

Senhoras e escravas

Enquanto Catarina observava joaninhas e organizava corridas de caracóis, Carolina entretinha-se com as formigas. Estes bichinhos, inquietos e agitados, como ela própria, a fascinavam. Seguia as trilhas das formigas por entre os pedregulhos e plantas ate descobrir as entradas dos formigueiros.
No lado avesso de certas folhas, quer dizer, no lado protegido do sol, Carolina encontrava insetos brancos e gordos rodeados de formigas; ficou eufórica quando um professora explicou, em classe, que os pulgões eram como vaquinhas de formigas, que cuidavam deles como vaqueiros cuidam do gado.
Havia no jardim três tipos de formigas: uma bem miudinha, que preferia os muros a paredes, havia as vermelhas gordas e as pretas magrelas.
As pretas magrelas, compridas, eram nervosas e apressadas, brigavam muito entre si. As gordas vermelhas eram lentas como damas autoritárias, brigavam entre si e com as pretas. Algumas vermelhas tinham grandes ferrões nas cabeças e Carolina as chamava de guardas. Quando a menina batia na porta de um formigueiro vermelho com um pauzinho, as formigas comuns desapareciam dentro da terra e apareciam montes de formigas guerreiras. Havia carreiras de formigas vermelhas a carreiras de formigas pretas e carreiras mistas, em que só as pretas carregavam folhas.
Que curioso, as vermelhas escravizam as pretas...
Que bobagem, você não sabe de nada – Catarina dava de ombros.
Um dia, um documentário de televisão sobre a vida animal mostrou como as formigas vermelhas escravizam formigas pretas e as fazem trabalhar para elas. Carolina olhou para Catarina e não disse nada. Catarina baixou os olhos e também não disse nada.
Naquele dia Carolina aprendeu como funciona a mente de um cientista – observa e pensa. Naquele dia Carolina também entendeu uma frase que o pai repetia: o melhor livro é a natureza, mas é preciso aprender a ler.

Pensamento positivo

Certa tarde Lúcia foi surpreendida pelos gritos de Carolina:
Socorro, mamãe, tem um troço duro na minha boca!
Era o primeiro dente de leite que caía.
Lúcia correu ao banheiro, onde a menina se enfiara.
A pequena, otimista, tinha o habito de ver a vida sob seu melhor aspecto. Antes que a mãe chegasse perto ela já estava a sorrir, olhando o liquido vermelho que escorria de seus lábios e tirando lá suas conclusões:
Não se preocupa, não, mamãe, meu dente caiu mas saiu um remedinho junto...


Um safári na biblioteca

Nas tardes muito abafadas, o melhor lugar da casa era, de longe, a biblioteca, até porque era possível viajar nos livros até a terra dos pingüins e sentir frio.
Podia-se jogar dama, xadrez, ludo, dominó ou simplesmente desenhar e pintar na escrivaninha de papai, no grande bloco de papel de rascunho que ficava lá à disposição de quem quisesse.
Uma tarde, de um livro antigo folheado por Catarina, caiu um leão africano, na verdade, um selo amarelado de um pais desconhecido. Mamãe, chamada para ver, olhou e traduziu – o selo vinha de um pais chamado África do Sul.
Aproveitando a deixa, mamãe pegou o Atlas e mostrou, no mapa, onde ficava o tal país.
Os adultos da casa aproveitavam incidentes como este para ensinar as crianças a usarem o atlas, o dicionário, o ábaco, e conversarem sobre a historia da Humanidade – com h maiúsculo, sim.
Naquela tarde o selo gerou um grande interesse pela África, seu bichos, seus países, sobre os povos que vieram para o Brasil e contribuíram para a formação do povo brasileiro.
Carolina mal suportou esperar o retorno do pai – não havia celulares naquele tempo – para que ele contasse em que carta viera aquele selo. Quando papai chegou em casa, contudo, ficou surpreso, disse que emprestava seus livros a tantos alunos e amigos, e, assim, o mistério não foi esclarecido.
Mamãe opinou, romântica:
Melhor assim. Agora temos um fato misterioso em nossa casa. É como se morássemos em uma casa encantada.

Desta água é melhor não beber

A pequena Carolina respondeu ao garçom:
Quero pinga.
Isto aconteceu na primeira vez em que a menina saiu a almoçar fora com a família, e o avo afirmou que ela poderia pedir o que quisesse. Papai, entre o riso da situação inusitada e a vergonha ante os olhares espantados dos outros clientes, resolveu a situação pedindo suco de laranja.
De onde você tirou esta idéia, Carolina? Ninguém toma pinga lá em casa.
A pequenina explicou, candidamente;
Quando vamos buscar pizza lá no bar da esquina, sempre tem um homem servindo pinga no balcão. Eu queria experimentar.
Ora essa....
O avô costumava dizer:
Bebês chupam chupeta, adultos bebem cerveja.
Na verdade, para não ‘aguar’, as netas podiam, sempre que quisessem, dar ‘uma bicadinha’ em seu copo, só para sentir o gostinho. No fundo, ele esperava que o gosto amargo provocasse repulsa nas crianças.
Os antigos preocupavam-se muito em não aguar as crianças. Aguar era adoecer de desejo por uma comida ou bebida. O desejo reprimido matava, se não satisfeito a tempo.
A família redobrou a vigilância sobre as bebidas. O bar ficava trancado a chave e só era aberto em dia de festa ou se havia visitas. Ninguém consumia mais do que um copo de licor ou vinho, nessas ocasiões. E, nas festas, olho vivo em cima da Carolina.
Até a véspera de Ano Novo, quando, fechando o portão às costas do ultimo convidado, ninguém avistou a menina. Chama daqui e dali, e nada.
No salão de festas, uma fileira de copos e taças totalmente vazios, e Carolina, debruçada na mesa, com um bigodinho de espuma ao redor dos lábios. A menininha esvaziara o fundo de todas as canecas e ressonava gostosamente.
Desaguara...
O passarinho ingênuo

Mamãe gostava muito de pássaros e costumava pendurar comedouros e bebedouros no terraço para eles.
Quando as meninas arrumaram um cachorro, os passarinhos ficaram mais ariscos, pois o cachorrinho corria para pular nas avezinhas.
Uma tarde calorenta, contudo, Carolina estava modorrentamente estudando no sofá – traduzo: dormindo – com o cachorrinho dormindo sobre sua barriga, quando foi acordada por pequenos beliscões em seu braço. Surpresa, abriu os olhos e viu uma avezinha passeando em cima dela, bem ao lado do cãozinho, que, por sorte, não acordou.
Na tarde seguinte, indo tomar água, Carolina ouviu um barulhinho perto da porta, olhou para o chão e lá estava o mesmo passarinho, pasmem, bebendo água na gamela do cachorro.
Dois dias depois, Carolina chegou à conclusão de que o passarinho, definitivamente, era maluco, pois estava caminhando pelo chão da sala, à toa, indo direto em direção ao cachorrinho que, de tão espantado, nem se mexia.

O passarinho atrevido nunca mais foi visto, e não sabemos se foi devorado por algum outro bicho menos amistoso que o nosso filhotinho de cachorro.


Historias de jovens

A oportunidade bata à porta

A musica brasileira é maravilhosa, mas em algumas épocas parece que dezenas de gênios musicais pipocam com especai encanto. A jovem guarda, por exemplo.
Assim os jovens dos anos sessenta e setenta se consideravam – a Jovem Guarda.
Sua música causava furor nos famosos festivais da TV Record. As rádios difundiam musicas cujas letras eram consideradas irreverentes: ‘que tudo vá pro inferno’, ‘deixa que digam, que pensem, que falem’, ‘ vou mandar a maior brasa, mora’.
Hoje parecem palavras inofensivas, mas, para a geração de pais com postura e compostura daquela época, esta frase singela soava como uma ‘rebeliao’ neste país sem guerra. Lá fora, com a absurda Guerra do Vietnã, o caso era outro. Os Beatles e os Beatniks desafiavam governos, no embalo do movimento hippie, este sim, forte constestação política, levando jovens á prisão, propondo mudanças radicais no comportamento social, como famílias coletivas, paz e amor.
Carolina e Catarina estavam no quarto entretidas com suas coisinhas de adolescentes, quando os sons vindos da rua trouxeram o clima de euforia para dentro da casa – apupos, gritos, assobios, buzinaço, gritaria.
Eis que, apoiados ao portão, estavam nada mais nada menos que o rei Roberto Carlos e seu amigo Erasmo ao lado, os dois mais famosos cantores da Jovem Guarda.
Reconhecidos e perseguidos pelas fãs enlouquecidas durante um passeio a Santos, os dois pararam o carro e desceram para distribuir alguns autógrafos, bem em frente ao portão da casa de Carolina e Catarina.
As duas gritaram e debruçaram-se até quase cair da janela, em sue entusiasmo. Lúcia veio ver o que acontecia e lá ficaram as três à janela, a observar o populacho.
Ah, como eu queria um autografo deles!
E a timidez? Cadê coragem?
Lúcia empurrou as filhas com carinho:
É só descer, meninas.
Com as faces pálidas, a respiração suspensa, os coraçãozinhos saltando sob as blusas, chegaram no portão a tempo. Afinal, quem mais que elas tinha direito aos autógrafos? Era o seu muro, não? Nem conseguiam falar, só esticar as mãos com os bloquinhos e a caneta.
Roberto Carlos sorriu para elas.
Erasmo também.
Durante semanas, as meninas trataram o muro como um pagão trata um altar.

domingo, agosto 08, 2010

lembrança de infância

Ah! O sol de inverno
Que não aquece ninguém -
Só engana os tolos.


a minha prima me chamava para brincar lá fora: tira o casaco, pequena, não ve que está sol?
e eu ficava a tiritar de frio...e a malvada ria, ria...

segunda-feira, julho 05, 2010

O toque

Certo dia, meu amigo,
Em um gesto descuidado
Tocaste meu pé e estremeci.
Nem vistes, distraído,
O efeito do teu afago,
Que espalhou-se em frenesi
Por meu corpo ali deitado
Em oferenda, a teu lado.
Não foi gesto calculado
De lascivo experiente
Na frieza calculada
De esquentar a amada.
Foi gesto bem inocente;
Bulindo com minha mente
Despertou-me a fantasia
Que eu mesma desconhecia.
Ah, meu amado, mau amado!
Fui nesta tarde a concubina
De um mandarim chinês
De belo porte e altivez,
Entre sedas macias... ai!
Tu, tão seguro em teus gestos,
Tão senhor de meus afetos,
Possuíste minha alma
Com toda calma
Sem perceber a amante
De um guerreiro samurai
No meu olhar radiante
Na paixão sem precedente
No convulsionar demente
Deste corpo adormecido
Que despertaste, querido,
Ao me tocar o pé
Inocente cafuné!

domingo, junho 27, 2010

hai cai

Manhã orvalhada –
Nas pétalas das camélias
O sol vira estrelas.

sábado, maio 22, 2010

A Nova Era

A Nova Era

Sonia Regina Rocha Rodrigues

Jeová debruçou-se sobre uma nuvem, tão triste que a Terra inteira garoou.
Jeová sentia-se cansado, cansado, fatigado mesmo. Há tempos pensava em tirar férias prolongadas, talvez até aposentar-se.
São Pedro resmungava que, se o Mestre demorasse muito para escolher um substituto, corria o risco de ficar por mais um milênio encarapitado no firmamento.
O caso é que o Criador, perfeccionista incurável, não achava substituto à altura. Mesmo os arcanjos mais experientes pareciam-lhe passivos demais, inocentes demais para o exigente Jeová. Administrar o universo requeria muita flexibilidade e um tantinho de malícia, atributo ausente naqueles entes puros.
Se o próprio Jeová não conseguia, apesar de cuidadoso planejamento, convencer o bicho-homem a participar do plano divino!
Iniciava-se o terceiro milênio.
Para preparar a humanidade para esta importante transformação, Jeová não tivera escrúpulos em requisitar espíritos não-cristãos altamente iluminados, como Ghandi e o Dalai Lama.
Êta, terráqueos teimosos e ignorantes!
Jeová gemeu.
Não contente em retratá-lo com rugas e cabelos brancos, como se acaso não fosse Ele a Perfeição e a Beleza Suprema, os humanos cultuavam Pluto, o dinheiro, drogavam-se e destruíam os últimos santuários ecológicos do planeta.
Jeová caprichara tanto para dar no que deu! Pecado original, expulsão do paraíso,séculos de guerras, por quê diabos o homem usava seu livre arbítrio para desobedecer? Castigos e punições revelavam-se inúteis.
Jeová chamou mentalmente sua mais bela e perfeita criatura, a única capaz de equiparar-se a Ele, sem obter resposta. Suspirou.
Há muito que Jeová deixara de considerar a obediência uma virtude. A obediência embota o raciocínio, torna as pessoas óbvias, vulneráveis a lideranças mal intencionadas. A obediência só ensina as pessoas a dizerem amém e Jeová estava farto da submissa resignação de seus carneiros. Grande parte da humanidade se desencaminhara por obedecer cegamente a papas venais, outra parte perecera em guerras fomentadas pelo fanatismo religioso, sem utilizar o excelente cérebro recebido ao nascer para examinar o mérito da matança. E por causa da cega obediência da Corte Celestial, no céu reinava eternamente um previsível tédio. Houvera, sim, uma única vez, um anjo criativo, original, engraçado, empreendedor, a quem Jeová muito amara, que O desafiara.
Jeová projetara suas esperanças no terceiro milênio. Alguns místicos interpretaram favoravelmente a ultima centúria das profecias de Nostradamus, farta literatura esotérica varreu o planeta e milhares procuraram terapia nos aromas das flores e praticaram regularmente técnicas de meditação. Jeová animou-se.
Então Bush fraudou as eleições na Flórida e Osama bin Laden treinou crianças na arte do ódio. O povo que se intitulava Seu esquecia o mais importante de seus mandamentos.
Em onze de setembro de 2001, Jeová encolheu-se em um cúmulo cinza chumbo e deixou-se escorregar rumo à Terra, devagarinho, até pousar em Mauna Loa.
Neste vulcão havaiano, o mais violento do planeta, onde a lava rubra escorre continuamente em emanações venenosas impressionantes, no interior incandescente da cratera, uma figura belíssima observou Jeová, em silêncio. Era uma réplica perfeita do Divino, Sua imagem, Sua semelhança.
- Lúcifer, meu bem amado! Há tempos concluí que só tu és capaz de substituir-me no comando do mundo. Por que não atendes a meu chamado?
- Para que viesses a mim, confessar Tua derrota.
- Podes orgulhar-te, fizeste um bom trabalho.
- Eu nada fiz. Tu fizeste. Encheste o mundo de não-podes. Regras! Proibições! Castigos! O resto é conseqüência. Que esperavas? Os homens espontaneamente buscam os prazeres inocentes, a princípio. Depois sentem medo e raiva dos castigos severos, rígidos, injustos e aí, culpados, vêm a mim e caem no crime.
- Concordas com o brasileiro que me acusou de milenar falta de imaginação?
- Tu falas demais. Mimas demais. Vigias demais. Relaxa.
- Que farias, em meu lugar?
- Nada. Confio na genialidade dos homens. Eles têm cérebros, eu os deixaria à solta, por sua conta e risco. As criaturas humanas são criativas e cheias de recursos. Se forem deixadas a seus próprios cuidados, logo se tornarão responsáveis, aprenderão com seus erros e farão boas escolhas.
- Bem, podes tentar. O mundo é teu. Acabou. Desisto.
Lúcifer bocejou e espreguiçou-se, indolente. Com um gesto majestoso interrompeu a torrente de lava e das entranhas da Terra saíram Voltaire, Schopenhauer, Calvino Lutero, Bernard Shaw, Carlos Drummond de Andrade...
Jeová interrogou Lúcifer com um olhar de espanto. Este explicou:
- Vou libertar minhas almas, para que organizem o mundo. Elas darão conta do recado. Afinal, elas alavancaram o progresso da espécie até agora.
À medida que lentamente desfilavam diante do Altíssimo artistas, filósofos, pensadores, cientistas, Jeová corava. À passagem de Giordano Bruno, estremeceu.
Lúcifer comentou às gargalhadas:
- E pensar que Galileu Galilei só escapou da fogueira porque mentiu! Salvou-se porque pecou!
Jeová percebeu que a nata da humanidade, as mais brilhantes criaturas, as geniais, eram justamente as desobedientes e rebeldes. Seus eleitos, ao contrário, tediosos e néscios,só não pecavam por falta de imaginação.
Lúcifer postou-se face a face com Jeová, ambos tão belos que poderiam perder-se em contemplação mútua eternidade afora. Lúcifer, dizia eu, finalmente falou:
- Façamos um trato. Eu perdoarei a meu inimigo se perdoares aquele que Te ofendeu.
Aquilo era tão inesperado que Jeová, ansioso pela reconciliação, chorou, sentindo-se leve e amoroso como no começo do mundo.
- E o homem? Vais cuidar dele?
Lúcifer deu de ombros:
- Prefiro convidar-Te para um joguinho cósmico.
No momento seguinte admiravam um céu de oito luas, de um vale gelado, em alguma galáxia distante do simpático planetinha azul.
- Já que a casa do Pai tem muitas moradas... – disse Lúcifer.
Jeová sentiu a ira primordial irromper ante o deboche da demoníaca criatura. No entanto, reconsiderou. Possivelmente o comentário apenas ocultasse uma verdade, sem ironias.
Lúcifer olhava bondosamente par seu companheiro.
Jeová examinou Lúcifer e viu a si próprio: belo, perfeito, imponente e majestoso. Só a seriedade faltava, substituída por um saudável bom humor.
Jeová estendeu sua mão. Lúcifer o imitou.
Quando ambos se tocaram, fundiram-se harmoniosamente ao som de um Big Bang.
Ele, agora íntegro, admira o caos, sorrindo, apreciando a infinita variedade em suas múltiplas manifestações.
No princípio, era o Silêncio.

terça-feira, maio 18, 2010

A FREIRA

este caso me foi relatado pelo Dr. Norélio Braga, que o ouviu pela primeira vez de outro colega, décadas atrás, recém chegado a Santos, quando pela primeira vez trabalhou no P.S. da Santa Casa de Santos. Outros médicos e funcionários antigos me confirmaram o relato. - Sonia Regina Rocha Rodrigues - autora.

Desembarquei pela primeira vez em Santos em uma madrugada úmida e silenciosa. Fiquei provisoriamente instalado no apartamento de Ronaldo, um amigo, em frente ao mar, na avenida que chamo de Avenida da Praia, sabendo que na realidade são cinco avenidas encadeadas, ou uma única avenida com cinco longos diferentes nomes bem difíceis de memorizar e que, na prática, quase ninguém utiliza. Enfim... fiquei instalado em algum trecho da dita avenida e pude, da janela de meu quarto, apreciar belíssimos espetáculos dignos das tintas de um Van Gogh. Muito interessantes as imagens de fachadas ensolaradas projetando sombras nítidas sob um céu enegrecido e tempestuoso. A primeira vez que observei este fenômeno senti-me mergulhar em um universo fantástico. Depois acostumei-me. O fenômeno, aqui, é normal.
Vim a Santos para trabalhar na Santa Casa de Misericórdia, um hospital antigo, esparramado ao sopé de um morro. A história que vou-lhes contar aconteceu no primeiro plantão em que ali trabalhei como médico clínico.

Passava um pouco da meia-noite. As enfermarias estavam silenciosas, o Pronto Socorro tranqüilo. Dirigia-me à lanchonete para um café, quando ouvi passinhos urgentes atrás de mim. Uma voz cantante e firme sussurrou-me:
“Ah, doutor! O paciente do 708 da ala C acaba de ter uma parada cárdio-respiratória. Precisamos do senhor!”
Voltei-me. Quem assim me falava era uma freira. E eu acabava de deixar a ala C!
“Aconteceu assim que o senhor deixou a enfermaria. Corra! É uma emergência!”
Galguei aos pulos a escada para a ala C, atravessei correndo o corredor, entrei no 708 e encontrei o doente roxo, os braços estendidos para a campainha que não conseguira alcançar a tempo. O acompanhante, adormecido no sofá, ressonava.
Puxei com força o cordão do alarme, gritei, coloquei o paciente no chão e iniciei o socorro. Depois de resolvida a situação, o paciente encaminhada à CTI e o acompanhante tranqüilizado, questionei a enfermagem:
“Por que não havia ninguém no quarto? Por que não estavam sendo tomadas as primeiras providências?
“Como, doutor? Nós nem sabíamos... o senhor nos chamou e viemos.”
“Quem me chamou?”
Aparentemente ninguém me chamara. Mencionei a freira e um desconforto pairou no ambiente. Há vários anos não havia freiras trabalhando na Santa Casa.
Voltei à lanchonete, disposto a tomar o desejado café, quando a mesma freira surgiu-me à frente, dizendo em tom que não admite demora:
“Doutor, o paciente que vai colocar marca-passo amanhã, o do 504, parou neste instante!” – assim falando, ela conduziu-me à porta do 2° A e eu já via, pelo vidro da porta, a enfermagem empurrando uma maca para a sala de emergência da Cardiologia. Ao ver-me, exclamaram:
“Graças! O senhor chegou na hora exata!”
Repetiu-se o fato: resolvida a urgência, constatei de que não haviam tido tempo de chamar-me. Eu simplesmente aparecera por ali na hora certa e, é claro, ninguém sabia de freira nenhuma.
Se o ambiente fosse outro, se a situação não implicasse em tamanha responsabilidade. Eu até pensaria tratar-se de algum trote para novatos. Não era este o caso, todavia, e eu estava furioso com os olhares enviesados que os funcionários trocavam entre si. Nisto surgiu Ronaldo:
“E aí, Nelson? Já tomou seu café? Posso ir agora tomar um lanche enquanto você assume a “porta”? Você afinal demorou uma eternidade com este café! Caiu dentro da xícara?”
“Café? Pois eu lhe digo o que fiz desde que saí de meu consultório: atendi a duas paradas, um na ala C e outra no 2° A ....
“Como? Não recebemos nenhum chamado lá na porta...”
“Foi uma freira que me encontrou no corredor.”
“Uma freira?”
“Uma freira, sim, senhor, uma freira das antigas, com hábito até o chão e véu e não me venha você também me dizer que aqui não existem freiras!”
Ele olhou-me estupefato:
“Bem, há uma freira...” – ele hesitou por um momento e então levou-me por um silencioso corredor até uma porta de mogno entalhada, que se abria para um salão de conferências luxuosamente decorado, em cujas paredes haviam fileiras de retratos.
“Reconheça a freira, Nelson.”
Olhei os retratos e entre diversas religiosas, lá estava ela, com seu olhar de eficiência tranqüila.
“É esta, com certeza.”
Então reparei nas datas abaixo do retrato. Duas datas – o ano de nascimento e o de ... falecimento.
“Não se assuste, amigo. É nosso fantasma particular. Mais dia, menos dia, todo médico a encontra. Dizem os sensitivos que ela circula pelos corredores, inclina-se à cabeceira dos doentes, a assombrar a Casa. Mas nós, médicos, só a vemos quando ela precisa de nós.”
“Não é possível! Não existem fantasmas.”
“Alguém chamou você? Chamou de verdade, pelo interfone, pelo telefone, pelo bip?”
“Não... não houve tempo, eu apareci antes...”
“Então?”
A madrugada ficou subitamente muito fria a perdi a vontade de tomar café. Um tremor desagradável percorreu-me a espinha. Ronaldo animou-me:
“Duas vidas foram salvas. É o que importa.”
Não tornei a ver a freira. Encontrar-me com o fantasma da casa duas vezes na mesma noite foi o que se pode chamar, com um pouco de humor, de sorte de principiante.
Apesar das manhãs nebulosas e dos dias à la Van Gogh, Santos não combina bem com fantasmas desfilando por sombrios corredores a gemer e a arrastar correntes enferrujadas. Esta terra abençoada, onde gente de todas as raças se irmana, combina melhor com as almas luminosas. Em nosso clima tropical, no mais dos dias ensolarado e quente, até os fantasmas são diferentes.