terça-feira, maio 18, 2010

A FREIRA

este caso me foi relatado pelo Dr. Norélio Braga, que o ouviu pela primeira vez de outro colega, décadas atrás, recém chegado a Santos, quando pela primeira vez trabalhou no P.S. da Santa Casa de Santos. Outros médicos e funcionários antigos me confirmaram o relato. - Sonia Regina Rocha Rodrigues - autora.

Desembarquei pela primeira vez em Santos em uma madrugada úmida e silenciosa. Fiquei provisoriamente instalado no apartamento de Ronaldo, um amigo, em frente ao mar, na avenida que chamo de Avenida da Praia, sabendo que na realidade são cinco avenidas encadeadas, ou uma única avenida com cinco longos diferentes nomes bem difíceis de memorizar e que, na prática, quase ninguém utiliza. Enfim... fiquei instalado em algum trecho da dita avenida e pude, da janela de meu quarto, apreciar belíssimos espetáculos dignos das tintas de um Van Gogh. Muito interessantes as imagens de fachadas ensolaradas projetando sombras nítidas sob um céu enegrecido e tempestuoso. A primeira vez que observei este fenômeno senti-me mergulhar em um universo fantástico. Depois acostumei-me. O fenômeno, aqui, é normal.
Vim a Santos para trabalhar na Santa Casa de Misericórdia, um hospital antigo, esparramado ao sopé de um morro. A história que vou-lhes contar aconteceu no primeiro plantão em que ali trabalhei como médico clínico.

Passava um pouco da meia-noite. As enfermarias estavam silenciosas, o Pronto Socorro tranqüilo. Dirigia-me à lanchonete para um café, quando ouvi passinhos urgentes atrás de mim. Uma voz cantante e firme sussurrou-me:
“Ah, doutor! O paciente do 708 da ala C acaba de ter uma parada cárdio-respiratória. Precisamos do senhor!”
Voltei-me. Quem assim me falava era uma freira. E eu acabava de deixar a ala C!
“Aconteceu assim que o senhor deixou a enfermaria. Corra! É uma emergência!”
Galguei aos pulos a escada para a ala C, atravessei correndo o corredor, entrei no 708 e encontrei o doente roxo, os braços estendidos para a campainha que não conseguira alcançar a tempo. O acompanhante, adormecido no sofá, ressonava.
Puxei com força o cordão do alarme, gritei, coloquei o paciente no chão e iniciei o socorro. Depois de resolvida a situação, o paciente encaminhada à CTI e o acompanhante tranqüilizado, questionei a enfermagem:
“Por que não havia ninguém no quarto? Por que não estavam sendo tomadas as primeiras providências?
“Como, doutor? Nós nem sabíamos... o senhor nos chamou e viemos.”
“Quem me chamou?”
Aparentemente ninguém me chamara. Mencionei a freira e um desconforto pairou no ambiente. Há vários anos não havia freiras trabalhando na Santa Casa.
Voltei à lanchonete, disposto a tomar o desejado café, quando a mesma freira surgiu-me à frente, dizendo em tom que não admite demora:
“Doutor, o paciente que vai colocar marca-passo amanhã, o do 504, parou neste instante!” – assim falando, ela conduziu-me à porta do 2° A e eu já via, pelo vidro da porta, a enfermagem empurrando uma maca para a sala de emergência da Cardiologia. Ao ver-me, exclamaram:
“Graças! O senhor chegou na hora exata!”
Repetiu-se o fato: resolvida a urgência, constatei de que não haviam tido tempo de chamar-me. Eu simplesmente aparecera por ali na hora certa e, é claro, ninguém sabia de freira nenhuma.
Se o ambiente fosse outro, se a situação não implicasse em tamanha responsabilidade. Eu até pensaria tratar-se de algum trote para novatos. Não era este o caso, todavia, e eu estava furioso com os olhares enviesados que os funcionários trocavam entre si. Nisto surgiu Ronaldo:
“E aí, Nelson? Já tomou seu café? Posso ir agora tomar um lanche enquanto você assume a “porta”? Você afinal demorou uma eternidade com este café! Caiu dentro da xícara?”
“Café? Pois eu lhe digo o que fiz desde que saí de meu consultório: atendi a duas paradas, um na ala C e outra no 2° A ....
“Como? Não recebemos nenhum chamado lá na porta...”
“Foi uma freira que me encontrou no corredor.”
“Uma freira?”
“Uma freira, sim, senhor, uma freira das antigas, com hábito até o chão e véu e não me venha você também me dizer que aqui não existem freiras!”
Ele olhou-me estupefato:
“Bem, há uma freira...” – ele hesitou por um momento e então levou-me por um silencioso corredor até uma porta de mogno entalhada, que se abria para um salão de conferências luxuosamente decorado, em cujas paredes haviam fileiras de retratos.
“Reconheça a freira, Nelson.”
Olhei os retratos e entre diversas religiosas, lá estava ela, com seu olhar de eficiência tranqüila.
“É esta, com certeza.”
Então reparei nas datas abaixo do retrato. Duas datas – o ano de nascimento e o de ... falecimento.
“Não se assuste, amigo. É nosso fantasma particular. Mais dia, menos dia, todo médico a encontra. Dizem os sensitivos que ela circula pelos corredores, inclina-se à cabeceira dos doentes, a assombrar a Casa. Mas nós, médicos, só a vemos quando ela precisa de nós.”
“Não é possível! Não existem fantasmas.”
“Alguém chamou você? Chamou de verdade, pelo interfone, pelo telefone, pelo bip?”
“Não... não houve tempo, eu apareci antes...”
“Então?”
A madrugada ficou subitamente muito fria a perdi a vontade de tomar café. Um tremor desagradável percorreu-me a espinha. Ronaldo animou-me:
“Duas vidas foram salvas. É o que importa.”
Não tornei a ver a freira. Encontrar-me com o fantasma da casa duas vezes na mesma noite foi o que se pode chamar, com um pouco de humor, de sorte de principiante.
Apesar das manhãs nebulosas e dos dias à la Van Gogh, Santos não combina bem com fantasmas desfilando por sombrios corredores a gemer e a arrastar correntes enferrujadas. Esta terra abençoada, onde gente de todas as raças se irmana, combina melhor com as almas luminosas. Em nosso clima tropical, no mais dos dias ensolarado e quente, até os fantasmas são diferentes.

Nenhum comentário: