sábado, maio 22, 2010

A Nova Era

A Nova Era

Sonia Regina Rocha Rodrigues

Jeová debruçou-se sobre uma nuvem, tão triste que a Terra inteira garoou.
Jeová sentia-se cansado, cansado, fatigado mesmo. Há tempos pensava em tirar férias prolongadas, talvez até aposentar-se.
São Pedro resmungava que, se o Mestre demorasse muito para escolher um substituto, corria o risco de ficar por mais um milênio encarapitado no firmamento.
O caso é que o Criador, perfeccionista incurável, não achava substituto à altura. Mesmo os arcanjos mais experientes pareciam-lhe passivos demais, inocentes demais para o exigente Jeová. Administrar o universo requeria muita flexibilidade e um tantinho de malícia, atributo ausente naqueles entes puros.
Se o próprio Jeová não conseguia, apesar de cuidadoso planejamento, convencer o bicho-homem a participar do plano divino!
Iniciava-se o terceiro milênio.
Para preparar a humanidade para esta importante transformação, Jeová não tivera escrúpulos em requisitar espíritos não-cristãos altamente iluminados, como Ghandi e o Dalai Lama.
Êta, terráqueos teimosos e ignorantes!
Jeová gemeu.
Não contente em retratá-lo com rugas e cabelos brancos, como se acaso não fosse Ele a Perfeição e a Beleza Suprema, os humanos cultuavam Pluto, o dinheiro, drogavam-se e destruíam os últimos santuários ecológicos do planeta.
Jeová caprichara tanto para dar no que deu! Pecado original, expulsão do paraíso,séculos de guerras, por quê diabos o homem usava seu livre arbítrio para desobedecer? Castigos e punições revelavam-se inúteis.
Jeová chamou mentalmente sua mais bela e perfeita criatura, a única capaz de equiparar-se a Ele, sem obter resposta. Suspirou.
Há muito que Jeová deixara de considerar a obediência uma virtude. A obediência embota o raciocínio, torna as pessoas óbvias, vulneráveis a lideranças mal intencionadas. A obediência só ensina as pessoas a dizerem amém e Jeová estava farto da submissa resignação de seus carneiros. Grande parte da humanidade se desencaminhara por obedecer cegamente a papas venais, outra parte perecera em guerras fomentadas pelo fanatismo religioso, sem utilizar o excelente cérebro recebido ao nascer para examinar o mérito da matança. E por causa da cega obediência da Corte Celestial, no céu reinava eternamente um previsível tédio. Houvera, sim, uma única vez, um anjo criativo, original, engraçado, empreendedor, a quem Jeová muito amara, que O desafiara.
Jeová projetara suas esperanças no terceiro milênio. Alguns místicos interpretaram favoravelmente a ultima centúria das profecias de Nostradamus, farta literatura esotérica varreu o planeta e milhares procuraram terapia nos aromas das flores e praticaram regularmente técnicas de meditação. Jeová animou-se.
Então Bush fraudou as eleições na Flórida e Osama bin Laden treinou crianças na arte do ódio. O povo que se intitulava Seu esquecia o mais importante de seus mandamentos.
Em onze de setembro de 2001, Jeová encolheu-se em um cúmulo cinza chumbo e deixou-se escorregar rumo à Terra, devagarinho, até pousar em Mauna Loa.
Neste vulcão havaiano, o mais violento do planeta, onde a lava rubra escorre continuamente em emanações venenosas impressionantes, no interior incandescente da cratera, uma figura belíssima observou Jeová, em silêncio. Era uma réplica perfeita do Divino, Sua imagem, Sua semelhança.
- Lúcifer, meu bem amado! Há tempos concluí que só tu és capaz de substituir-me no comando do mundo. Por que não atendes a meu chamado?
- Para que viesses a mim, confessar Tua derrota.
- Podes orgulhar-te, fizeste um bom trabalho.
- Eu nada fiz. Tu fizeste. Encheste o mundo de não-podes. Regras! Proibições! Castigos! O resto é conseqüência. Que esperavas? Os homens espontaneamente buscam os prazeres inocentes, a princípio. Depois sentem medo e raiva dos castigos severos, rígidos, injustos e aí, culpados, vêm a mim e caem no crime.
- Concordas com o brasileiro que me acusou de milenar falta de imaginação?
- Tu falas demais. Mimas demais. Vigias demais. Relaxa.
- Que farias, em meu lugar?
- Nada. Confio na genialidade dos homens. Eles têm cérebros, eu os deixaria à solta, por sua conta e risco. As criaturas humanas são criativas e cheias de recursos. Se forem deixadas a seus próprios cuidados, logo se tornarão responsáveis, aprenderão com seus erros e farão boas escolhas.
- Bem, podes tentar. O mundo é teu. Acabou. Desisto.
Lúcifer bocejou e espreguiçou-se, indolente. Com um gesto majestoso interrompeu a torrente de lava e das entranhas da Terra saíram Voltaire, Schopenhauer, Calvino Lutero, Bernard Shaw, Carlos Drummond de Andrade...
Jeová interrogou Lúcifer com um olhar de espanto. Este explicou:
- Vou libertar minhas almas, para que organizem o mundo. Elas darão conta do recado. Afinal, elas alavancaram o progresso da espécie até agora.
À medida que lentamente desfilavam diante do Altíssimo artistas, filósofos, pensadores, cientistas, Jeová corava. À passagem de Giordano Bruno, estremeceu.
Lúcifer comentou às gargalhadas:
- E pensar que Galileu Galilei só escapou da fogueira porque mentiu! Salvou-se porque pecou!
Jeová percebeu que a nata da humanidade, as mais brilhantes criaturas, as geniais, eram justamente as desobedientes e rebeldes. Seus eleitos, ao contrário, tediosos e néscios,só não pecavam por falta de imaginação.
Lúcifer postou-se face a face com Jeová, ambos tão belos que poderiam perder-se em contemplação mútua eternidade afora. Lúcifer, dizia eu, finalmente falou:
- Façamos um trato. Eu perdoarei a meu inimigo se perdoares aquele que Te ofendeu.
Aquilo era tão inesperado que Jeová, ansioso pela reconciliação, chorou, sentindo-se leve e amoroso como no começo do mundo.
- E o homem? Vais cuidar dele?
Lúcifer deu de ombros:
- Prefiro convidar-Te para um joguinho cósmico.
No momento seguinte admiravam um céu de oito luas, de um vale gelado, em alguma galáxia distante do simpático planetinha azul.
- Já que a casa do Pai tem muitas moradas... – disse Lúcifer.
Jeová sentiu a ira primordial irromper ante o deboche da demoníaca criatura. No entanto, reconsiderou. Possivelmente o comentário apenas ocultasse uma verdade, sem ironias.
Lúcifer olhava bondosamente par seu companheiro.
Jeová examinou Lúcifer e viu a si próprio: belo, perfeito, imponente e majestoso. Só a seriedade faltava, substituída por um saudável bom humor.
Jeová estendeu sua mão. Lúcifer o imitou.
Quando ambos se tocaram, fundiram-se harmoniosamente ao som de um Big Bang.
Ele, agora íntegro, admira o caos, sorrindo, apreciando a infinita variedade em suas múltiplas manifestações.
No princípio, era o Silêncio.

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