sábado, março 26, 2005

DIAS DE OUTONO

começo a publiocar hoje, em capítulos, o diário bem humorado de uma escritora sobre tudo, sua secreta vida mental,
este livro está registrado na Fundação Biblioteca Nacional, @ da autora,
permitida a reprodução desde que citadas autora e fonte.




DIAS DE OUTONO
Sonia Rodrigues

“Sob a pele, há uma vida paralela, onde as datas não importam.”


1994



Há muitos anos não escrevo um diário. O de infância joguei fora, o de adolescente era tão perigoso que rasguei em mil pedacinhos, houve um outro tão sofrido que queimei. No entanto um episódio banal fez cócegas em meus dedos e cá estou de novo a diarizar meu cotidiano. E, com o computador, teoricamente, fica mais fácil, mais sigiloso e nem ocupa espaço...O fato banal, que me levou de novo a escrever, foi o que se segue:
Assiti um documentário sobre Mary Cassat, a pintora impressionista, esposa de Degas.
Ela recebe a visita de Louise May Alcot, a escritora, que diz para a sobrinha adolescente de Mary:
- Se você gosta de escrever, tem de ter um diário. Um diário ajudará você a compreender seus sentimentos.
Comigo não é assim. Eu me confundo ao contar meu dia a meu diário, pois há tantos aspectos diferentes e tantos pontos de vista e tantas personagens interiores querendo roubar a cena, que acabo por não saber o que realmente me aconteceu.
Freqüentemente, escrever diários me leva a descaminhos, a sombrias vielas, sentimentos bizarros ou desagradáveis, a ilusões, a distorções. Apenas transformando realidade em literatura aquela bizarrice adquire significado.
Definitivamente, o mundo dos sentimentos é meu lado sombra.


Custei, mas finalmente resolvi _ é agora que eu aposento a minha obsoleta máquina de escrever.
Ansiosa por entrar na era da informática, comprei um 486 DX2 66. Não se impressionem com esses números todos. Trata - se, como vocês já devem ter adivinhado, de um computador . Um computador pessoal, o mais moderno do mercado, com impressora e multimídia.
E , deslumbrada, a família aventurou - se pelos ícones do Windows adentro. E foi amor à primeira vista _ maravilhoso ... enquanto durou.
E durou tão pouco !
Como eu sou vítima profissional de todo tipo de parafernália moderna , seja mecânica ou eletrônica, as filhas, já acostumadas com a urucubaca, foram reclamando:
- Também, mãe, já dava para adivinhar, tudo acontece contigo !
Há quinze dias os técnicos tentam descobrir porque aquela maravilha não funciona.
Técnico vem, técnico vai, acrescenta - se memória, troca - se a placa, reprograma - se o winchester ... e nada ! Ontem, em desespero de causa, após confabulações misteriosas, os doutores em computação levaram meu Forrest Gump para a UTI.
E cá estou eu a datilografar esta matéria pela maneira troglodita na minha velha e fiel Olivetti.




O comp está apaixonado e cheio de dúvidas !, exclamou minha filha Fernanda, enquanto eu, infeliz, olhava a impressão de meus textos: uma única linha de asteriscos, corações, quadrados, círculos e pontos de interrogação.
No dia anterior o comp não imprimia nada. Eu chamara o técnico, por sorte eu moro bem ao lado da loja. Ele chegara, sentara - se, eu dera os comandos para demonstrar o problema e o engraçadinho funcionou normalmente.
Que raiva!
Lá tive eu que engolir um “às vezes é o usuário que não sabe usar...”
Como se eu não trabalhasse com impressoras há mais de um ano!
No mês anterior eu enviara uma parte do jornal para a redação todo em colagens, porque o idiota se recusara a imprimir a última meia página do tablóide, jogando na tela a mensagem: “O cabo está solto”
Não havia nenhum cabo solto, evidentemente, mas a máquina não se deixava convencer. Quando voltei, Fernanda terminava de compor um trabalho de escola, quinze folhas elaboradamente impressas pelo comp.
Estou absolutamente convicta de que aquela máquina me odeia. Faz de propósito para atrapalhar a minha vida.
Máquina não tem vida ? Ah, tem, sim. Tenho a mais absoluta certeza de que a minha, pelo menos, tem uma personalidade própria.
Pois como explicar que assim que a Fernanda sentou - se em frente ao monitor e solicitou a impressão, o adorável comp imprimiu meus contos direitinho no maior capricho?


É admirável a capacidade de nossas lojas e supermercados contratarem pessoas totalmente desinformadas sobre o que vendem.
Nem falo do vendedor de livros que procura Machado de Assis no balcão dos Últimos Lançamentos ou A Defesa de Sócrates na seção de esportes.
O caso é mais grave, gravíssimo até. Julgue o leitor por si mesmo.
Vou ao supermercado comprar feijões. Há anos compro um tipo de feijão pré-cozido, marca Vapt-vupt. Fica pronto em três minutos com caldo grosso e saboroso. Não encontrando, pergunto ao gerente.
Parece ser o gerente. Está de terno e gravata, usa um crachá do estabelecimento e está dando ordens a outros funcionários. O cidadão me conduz à seção dos ensacados, onde um rapaz me aponta os feijões secos.
- Quero o pré-cozido – explico.
Todos os feijões estão aqui – afirma ele.
- Marca Vapt-vupt – insisto, e, encontrando dois olhares indiferentes, mudo de tática – e onde encontro as batatas pré-cozidas?
- Isto é fácil – o rosto do gerente se abre em um sorriso e ele me leva ao rapaz que descarrega batatas fritas em saquinhos nas seção dos petiscos.
- Procuro as batatas pré-cozidas – explico.
- Aqui estão as fritas. A senhora já olhou nos congelados?
- O nome da marca é Vapt-vupt – arrisco, desistindo de esclarecer que não são congeladas.
- Ah! Estão em frente aos legumes .Por aqui – e o bem informado rapaz nos guia até uma prateleira repleta dos mais diversos produtos da Vapt-vupt, inclusive batatas e feijões. O gerente se dirige a mim no tom mais eficiente do mundo:
- Aí estão suas batatas, senhora.
Agradeço, pego os feijões e me dirijo ao caixa.



Existem duas adolescências na vida: a primeira aos doze, quando nos libertamos dos pais. A segunda acontece quando nos libertamos dos filhos.

O castigo do pecador vem atrelado ao pecado. Assim é que os gordos engordam, os preguiçosos empobrecem, os irados tornam-se hipertensos e as mães... definham aprisionadas na dita ‘relação definitiva’

Mal entrara eu na livraria e caiu-me nas mãos os Contos do Espólio. E lá estava o mais magnífico conto que já li: o rato entre o gato e a armadilha.
Quem foge da ratoeira encontra o gato de Kafka.
Entre a ratoeira e o gato, recuso o dilema, procuro opções. Não sou rato, pertenço antes a uma raça que não tenho bem certeza de poder chamar de humana, mas dane-se o tcheco! Este é meu conto, quero um universo ‘leminskiano’ e decreto que nessas linhas, ‘grafite é o limite.’ Mereço o nirvana, não a ratoeira, nem a goela do gato, nem o kafkiano pessimismo por mais genial que seja. Sou brasileira, dou a volta por cima, faço a hora, não espera acontecer, este exercício intelectual não resolve coisa nenhuma mas é divertido como o quê.


Sou diariamente agredida pelo despreparo culinário da mocinha do andar de baixo. Um verdadeiro terrorismo gastronômico: o pão queimado, o feijão que pega, o cozido que passou do ponto. Já estamos amparados por lei quanto à praga da invasão acústica, quando aos cheiros, a coisa é bem diferente. Nas regras do condomínio há de haver alguma que nos garanta a privacidade olfativa.

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