quinta-feira, março 31, 2005

Dias de outono


@ da autora - registrado na Fundação Biblioteca Nacional

continuo hoje a edição do livro Dias de Outono, um diário sem datas, porque, na vida interior, datas não importam, está-se a contar uma outra vida, oculta sob a pele, a vida daquele outro que ninguém conhece, aquela vida sobre a quel Fernando Pessoa referia-se como a vida que é pensada, mas nem por isso, penso eu, menos sentida.

Boa leitura!


Parte 2

Idéias para um concurso promovido pela Nestlé, pois, ao contrário de minha vizinha, adoro cozinhar, correção: adoro fazer doces:
Nestlé faz parte do álbum da família desde o primeiro aniversário de minha filha, nos doces caprichosos e deliciosos que enfeitam as mesas das festas.
O seu primeiro bolo foi um tambor, confeitado em rosa e azul, com baquetas de biscuit. E recheado com Leite Condensado Moça.
O segundo foi um relógio, com números de chocolate e mostradores de confeitos.
O terceiro foi uma boneca, negra, com cabelos de granulado, porque a aniversariante era doida por chocolate.
No quarto aniversário a casa virou circo e o bolo palhaço ganhou cabelos de fios de ovos e nariz de goiabada.
O quinto aniversário foi comemorado com um barco à vela, simples de confeitar, porque a mãe estava sem tempo; a graça da mesa ficou por conta dos smurfs que navegavam nele.
No ano seguinte, a mãe estava de férias e caprichou na decoração do Sítio do Picapau Amarelo. O bolo nem poderia ser outro: a boneca Emília.
Outros bolos esperam sua vez na espaço do armário reservado às publicações culinárias: o já gasto Livro de Receitas Culinárias de Chocolate de Juliette Elkon, os livretos sobre festas infantis e festas juninas da Nestlé e, é claro, a maravilhosa coleção de revistas Nestlé e Você. Ao lado, no meu caderno de receitas, há uma parte especial dedicada aos recortes de bolos cuidadosamente colecionados das latas de Leite Moça. E, na primeira página deste caderno de capa dura, que a professora do ginásio profetizou “deverá durar a vida toda”, está a primeira receita que fiz, aos doze anos, copiada do caderno da melhor amiga: o pavê Nestlé.




Ainda Kafka. Penso naquele incrível conto sobre o gato e o rato e salta-me à memória a imagem de um Buda de marfim e de Monteiro Lobato. Não há nenhum elemento de ligação entre a estátua, Lobato e o conto de Kafka (nove anos de análise freudina poderiam ser desperdiçados nesta busca inglória), mas Kafka é assim: dá nós no cérebro. Se eu escrevesse como Kafka estaria há muito confinada entre quatro paredes, confirmando assim as idéias kafkianas.
Se Kafka nascesse no Brasil o sol dos trópicos avacalharia com seu pessimismo. Que seriedade resiste a um meio-dia de fevereiro ao ar livre? O suor não tem dignidade.
Ao ser apresentado a uma água de coco gelada, Kafka relaxaria e trocaria as gargalhadas com que acompanhava a leitura de seus contos por um sorriso de, pasmem, puro prazer. A sensação inusitada implodiria seu universo. E as invés de escrever, o tcheco comporia sambas, entrudos, presepadas e bossa-nova, teria talvez criado o Ritmo do Absurdo, tão de conformidade com nossa História.
A genialidade será talvez genética, no entanto acredito na superioridade da geografia. O clima mudaria tudo.


Antigamente, as pessoas consultavam a lista telefônica em busca do número de alguém. Hoje é diferente.
Precisando telefonar para o INAMPS e para a Faculdade Dom Domênico, revirei as páginas brancas e as amarelas. Nada. Liguei para Informações e, de cada vez, ouvi:
- Este telefone não consta da lista.
- Não diga! Se constasse da lista... – bem, do outro lado da linha, a telefonista não sabia que eu estava em casa, com a lista na mão. Tentei argumentar: - A senhora com certeza conhece o Posto de Assistência Médica do INAMPS, na Aparecida, é caso de utilidade pública, este telefone tem de constar em algum lugar!
- Se a senhora souber em nome de quem está o telefone...
A faculdade também não consta da lista, segundo Informações:
- Uma faculdade inteira não pode simplesmente desaparecer! A senhora sabe, com certeza, que esta faculdade existe, não é?
- Não consta da lista. – Clic.
Definitivamente, a “criatura” do outro lado do fio não é mais humana, privatizados que foram os seus neurônios em prol do lucro de alguns.
Encontrar os números necessários é simples, desde que a gente aprenda a técnica. Primeiro, tente o vizinho. Depois, ligue para um estabelecimento similar. Consegui o número do INAMPS ligando para o INSS, onde uma simpática funcionária me forneceu não um, mas dois telefones do posto em questão. Discando para outra faculdade, uma das secretárias forneceu-me o número da Dom Domênico. Este é o procedimento que funciona atualmente.
Quanto à lista telefônica... não, não a jogue fora! Ela é extremamente útil! Com ela, você evita as filas no correio para consultar rotos, ensebados e dilacerados catálogos, pois nela encontram-se os CEPs de todas as ruas de nossa cidade.


UM ANTÍDOTO, JÁ!
Fui envenenada por FHC. Veneno mais tóxico que o BHC, FHC corrói aquele lugarzinho secreto responsável pelo bem-estar e pela paz de espírito, que os místicos chamam de ‘alma’, os junguianos ‘self’ e o cidadão comum simplesmente ‘bolso’. Questão de ponto de vista.
Ainda convalescente da última mordida do Leão, reajo mal a 43 anos de brasilidade.
Devo à CEF, onde fui trocar de pesadelo (do pesadelo do aluguel para o pesadelo da casa própria) uma úlcera de stress, noites de insônia e sessenta dias de completa esterilidade mental – as idéias todas debandaram, em pânico.
Recupero-me aos poucos, na esperança bem brasileira de conseguir pagar juros absurdos com salários congelados há mais de três anos. Valei-me, Santa Rita dos Impossíveis!
As próximas eleições? Meu voto é ecológico, que a vida é para todos e o dinheiro também. Quero respirar!
Agora, com licença, vou fazer pipocas, assistir ao final da Copa do Mundo e tentar convencer o caçula a desistir daquela universidade a R$1000,00 por mês com garantia de desemprego certo:
_ Vai jogar futebol, meu filho!




O caminhão de mudança encostou e eu fui logo avisando:
- Os livros embalo eu!
Pouco me importa o que acontecerá com as roupas, as louças e os eletrodomésticos. Afinal, trata-se de um problema mecânico bastante simples: pegar de um lugar e levar para outro.
Quanto aos livros, a questão é diferente. Na minha primeira mudança fiquei durante uma semana encontrando os coitadinhos nos lugares mais inusitados: na máquina de lavar, no forno, no freezer. Até mesmo servindo de calço para uma perna de sofá capenga _ e olha que era um exemplar novinho, que eu mal começara a ler.
É indispensável examinar o caminhão cuidadosamente antes que parta.
- Tem certeza de que descarregou tudo?
- Sim, senhora. Aí dentro só tem papel velho e uma meia dúzia de livros que caíram dos caixotes.
- Livros? E vocês não os pegaram?
- Pra que? A senhora já tem tanto livro aí, que mais um menos um não vai fazer diferença.
E, estatelados no chão sujo, meu atlas de
anatomia e minha coleção de arte, importada!
Não é muito ruim quando os carregadores enfiam alguns exemplares junto com os sabonetes _ ficam cheirosos por bastante tempo. Chato é quando eles os socam no mesmo caixote com cebolas, pó de café e outras especiarias - por semanas, ao escolher um livro, tenho a sensação de estar indo ao supermercado.
Em outra ocasião, eu embalava cuidadosamente meus cristais, quando dei - me conta de um silêncio incomum.
Onde estavam os carregadores? Procura daqui e dali, afinal encontrei - os sentados na sala, absorvidos na leitura.
Súbita paixão pela literatura? Nada disso. É que haviam descoberto uma Enciclopédia Sexual Ilustrada.
Desta feita eu resolvi fazer na biblioteca a mesma faxina que faço no resto da casa _ sumir com as velharias, cortando o que esteja fora de uso e fora de moda.
Comigo ficaram apenas os clássicos, as obras-primas, os meus preferidos inseparáveis amigos de todas as horas.
Por isso foi tão fácil acomodá-los, pois couberam todos em apenas vinte e cinco caixotes.



Acordo angustiada. Sonhei que na sala onde dou minhas aulas, há uma cama onde escondi minha bolsa. Há muitas pessoas ali, saímos e deixamos a porta aberta. Percebo que há vozes estranhas na casa, mas não digo nada. Quando voltamos para a sala, nada foi roubado, exceto minha bolsa, que alguém encontrou jogada na rua, sem dinheiro, sem as chaves do carro, sem os documentos e inclusive sem o seguro do carro.
Alguém realmente quer tomar a direção de minha vida, sem nenhuma garantia.





Um sonho perturbador. Estou em Bebedouro, com duas colegas que cantavam comigo em um coral, Zulmira e Nívia. Vestida de preto, Nívia está gemendo e não tem pés. Zulmira diz que a dor é por uma perna estar menor que a outra. É madrugada e vamos à praia, onde entramos dentro de uma rocha. Ao entrar na caverna, vejo uma ex-colega de ginásio, imensa de gorda, deitada em uma maca; ela chama, conta para Zulmira que está doente, tem as faces vermelhas e inchadas. Na praia, em declive, há muita gente, a água é transparente e está um dia ensolarado. Suspendo a saia para molhar o pé, não entro na água. Lembro-me de que a primeira vez que entrei na água, nesta praia, mergulhei até o pescoço, recordo a deliciosa sensação de água gelada na pele quente. Torno a entrar na caverna, e a garota gorda diz que emagreceu 4,5 kg. Tornamos a sair, a água subiu tanto que passou a areia e a amurada, inundou o passeio. São águas tranqüilas e as atravesso para ir embora.
Acredito que este seja um sonho sobre partes doentes. Nívia é como um orgulhoso pavão de voz linda e pés feios; desequilíbrio entre ação e emoção; impotência – sem pés não pode andar. A garota gorda, inchada, retém emoções e vê os defeitos alheios. Zulmira sobrecarrega-se de trabalho, é só coração e determinação, dedicada aos outros. Eu estou indefinida andando em companhia de pessoas com problemas sem tomar nenhuma atitude, deixando-me levar.



Ontem senti-me de novo vivendo no interior, quando Fábio convidou-me para ir ao teatro Municipal, assistir um concerto em prol da campanha Aquisição de um Steinway (piano de cauda). É como um flash back de Léa Pitelli em Um Piano para Comedouro.
Comedouro foi uma lição de vida. Lá comecei a entender o mundo dos ricos, a elite culta, a fração elegante dos ricos. Rico é diferente: alegre, seguro, tranqüilo, um privilegiado como consumidor de cultura. Fábio me disse para ir chique que a velharada gosta de ir bem arrumada. Em Comedouro, eu correria a minhas pérolas. Aqui, coloquei meu vestido mais novo, meu colar e brinco básicos, batom básico e gotas de um perfume francês. A velharada inteira parecia estar de uniforme: tailleurs, cores pastéis, as inevitáveis pérolas – colares curtos ou longos, com uma ou duas voltas, e enormes brincos combinando.
O concerto foi divino, viajei na música, um mar de emoções em que o maestro Guga viaja admiravelmente, aliás, do jeito que aquele maestro se mexe, ele parece nadar entre os sons. O pianista vindo de Innsbruck tinha mãos grandes e gordas. Na opinião do Fábio é o melhor pianista do mundo. Já a Regina Amaral, que organizou o concerto, disse tsc tsc, há muitos pianistas melhores, citou o nome de três celebridades internacionais e comentou que, quando eles vêm a São Paulo, sua filha os convida e eles se apresentam no salão particular em casa dela, pois a filha tem um salão para trinta pessoas, com dois pianos de cauda, exclusivamente para esses concertos restritos aos íntimos da família... Como eu dizia, rico é diferente.
Fui apresentada para as presidentes de tantas entidades culturais que não gravei os nomes nem das presidentes nem das entidades. Todas de queixo para cima, peito estufado, olhar de águia, sorriso satisfeito do tipo eu mando e gosto disso. Fábio me apresentou como escritora e eu retruquei à altura, anunciando que sou a editora do Chapéu-de-Sol – literatura e outras artes, lembram-se da reportagem de capa sobre a Zezinha? Maria José Aranha de Resende, a Zezinha, espalhou nossa revista para esta elite toda, foi muito bom para nós, um excelente trabalho de divulgação.
A maior parte dessa elite cultural fechada se conhece desde a infância e se freqüenta em locais exclusivos. Em Comedouro eu diria que são umas sessenta pessoas, aqui umas quatrocentas; a importância que lá se dá ao nome de família aqui é acrescido pelo olha só o que eu fiz/ conheci/vi/participei. Um mundo elegante, refinado, perfumado...





Sonho. Vovó estava aqui, em casa, rindo, rindo...
Antes de vovó morrer, ela ficava com os olhos parados e distantes por alguns momentos e então dizia que estava em um lugar muito bonito, e tanta gente a chamava e ria, ria e que ela se sentia feliz.
Será que vou morrer?

Ser poeta é agradecer a vida com alegria, pois, como dizia Epicuro, os deuses nos deram tudo, exceto sabedoria. Basta escolher, desfrutar, agradecer, exaltar.


HAICAI DE MESTRE

hora do almoço -
pela porta, com os raios de sol,
as sombras do outono

Chora



Dicas de sucesso
Ama tua vocação com paixão, ela é o sentido de tua vida –
Auguste Rodin



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