segunda-feira, dezembro 27, 2010

Se eu tivesse visto...

A Dra. Cristina já colocara as luvas e pegara a seringa com adrenalina quando a porta abriu-se, e o homem entrou revólver em punho. ‘Vou morrer’, pensou a médica.
A coisa toda não demorou vinte segundos. O Dr. Maurício atravessou a sala, empurrou o homem para fora, fechou a porta com a chave e voltou a conectar os eletrodos do eletrocardiograma. As outras três pessoas na sala de emergência olharam-no como herói.
A linha horizontal no monitor pedia urgência. O paciente na maca recebera um choque elétrico e estava em parada cardiorrespiratória.
Caio voltou a insuflar o ambu. Cida fixou o escalpe para o soro na veia do antebraço. Cristina aplicou a adrenalina intracardíaca e Maurício anunciou:
- Ritmo sinusal, sessenta por minuto. Conseguimos.
O ambiente silencioso pesava. Os rostos demonstravam medo. Nada das piadas e gracejos usuais para quebrar a tensão. Somente Maurício agia normalmente.
- O paciente está pronto para a UTI, pessoal. Que é que a com vocês? Por que ninguém se mexe? Abram esta porta!
Lá fora ouviam-se gritos, ruídos de luta, agitação.
Caio gaguejou:
- É que... é que... é que...
Já Cida suspirou, escorregando a o longo da parede:
-Ai, doutor...
Maurício amparou Cida, deitou-a no chão, verificou a pressão e chegou-lhe um ‘flor de maçã’ ao nariz para reanimá-la. Lá fora a confusão acalmara. E como ninguém ousasse sair do lugar, o próprio Maurício abriu a porta e empurrou a maca rumo à UTI, arrastando Cristina consigo:
- Vamos com isso.
Pelo corredor, agora anormalmente silencioso e deserto, os dois dirigiram-se à UTI, onde entregaram o paciente e seguiram para tomar um merecido café.
Cida e Caio já estavam na copa. Caio comentou:
- Era o irmão mais moço quem entrou na sala, fez a maior confusão na recepção até que os policiais os levaram para a delegacia. Ficou gritando que os médicos iam matar o irmão dele. Cada louco que nos aparece...
Cida agradeceu:
- Mas que sangue-frio, Dr. Maurício! Como o senhor foi corajoso!
E Cristina acrescentou:
- Eu pensei que ia morrer. Se não fosse você...
Maurício olhou intrigado de um rosto para outro:
- Do que vocês estão falando, afinal?
- O senhor enfrentou o homem!
- Claro! Ele ia atrapalhar, contaminar o campo, podia desmaiar lá dentro, pegar algum material, sabe-se lá o que mais...
- Maurício, você não viu o revólver?
- Revólver?
- Doutor, o homem estava armado!!! Ele apontou a arma para o seu peito e o senhor nem se abalou!
Maurício fica de repente muito pálido e murmura, antes de escorregar ao longo da parede, desmaiando:
- Se eu tivesse visto o revolver, não teria saído do lugar!

(publicado na revista Movimento nº 4 – ano VIII, do laboratório Novartis, em 1998

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