domingo, janeiro 02, 2011

Ritual - crônica

Ela desistira de fabricar aquela onda inexistente em seus cabelos. Inútil. Lá no íntimo sentia a mesma tristeza.
A espera. Parecia-lhe que toda sua vida fora sempre uma espera, uma expectativa de algo que cada vez afastava-se mais: quando eu fizer quinze anos, quando eu entrar na faculdade, quando eu me formar, quando, quando... meu Deus, quando iria sentir, enfim, que a vida lhe pertencia?
Repetia-se a mesma agonia de todos os anos. Desenrolava-se o filminho de seus atos nos últimos 365 dias, projetando-se em uma velocidade estonteante e nitidez imperdoável.
Enfim, deixara ela sua marca no mundo?
Por que este coração exigente, rebelde, colocando sempre tão alto seus ideais? O que é esta vida, afinal?
‘Pare, pare, tempo! Fique aí parado enquanto procuro dignificar minha existência, deixe-me fazer qualquer coisa que a torne diferente do nada.’
Vinte anos. Uma eternidade. Um nada.
Já os parentes escolhiam rosas brancas para Iemanjá. Iam todos à praia.
Ela pegou uma vela azul e três botões de rosa, rumo à água.
Vivia agora o melhor momento, acesa a vela, jogadas as flores, caminhando à beira d’água a olhar as estrelas, sentindo a carícia envolvente da brisa, a maciez da areia molhada sob os pés, a melodia das vagas sob a imensidão da noite.
De volta à casa, dez segundos para a meia-noite, alguém passou correndo por ela, com um cacho de uva na mão, uma taça de champagne na outra, a gritra: ‘Viva o Ano Novo!’
Risos, mil abraços e felicitações, algazarra.
No jornal do dia seguinte, ao lado de uma cegonha carregando um nenê no bico, letras enormes e festivas:
‘UM PRESENTÃO PARA VOCÊ. UM ANO INTEIRINHO QUE NINGUÉM USOU.’

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